Estávamos
no final de 1957. Em Cajazeiras, alto sertão paraibano, rei- navam, nas noites
varridas pelas a- ragens que sobravam do Araripe, o mo- tor de luz e Edite. Ela,
como rainha de outras artes, dona de uma pensão de mulheres. No começo da
noite, ao lusco-fusco, o motor era acionado e ofegava até onze horas,
espalhando pontos de luz amarela que varavam os escuros. Faltando alguns
minutos para ser desligado, a luz sumia por instantes e voltava; aviso para a
luz sumia por instantes e voltava; aviso para que todos se recolhessem,
procurassem suas casas e os casais se despedissem. Um toque de recolher.
Durante
o dia, a cidade suava. O sol, naquelas para- gens, ficava mais perto do chão. O comércio
funcionava devagar, as pessoas procu- ravam sombra. Se havia inver- no, corria
dinheiro, a vida se- guia boa, a cidade se levantava. Nos tempos de seca, um
in- ferno. Teve gente que viu um teju (Tupinambis teguixim), bi- cho resistente ao
maior estio, pular de uma oiticica (Licania rigida) da estrada, na bagagem
de um ônibus que passava para São Paulo, numa seca dessas. Nessa situação,
quando alguém, um dia, anunciou que Cajazeiras iria receber energia elétrica
da usina de Coremas, que mais tarde se integraria ao sistema Chesf, anunciava o
começo de uma era e o fim de um jugo, o fim das trevas. A luz amarela e fraca
do motor da luz daria lugar ao clarão da modernidade. Chico Sales, vereador
paparicado entre as meninas de Edite, afeito a prosopopeias, chegou a dizer, à
luz de lamparinas, que Cajazeiras, em cinco anos, poderia ser para o Brasil o
que Detroit era para os Estados Unidos. Uma rapariguinha recém-chegada do
Crato, suspirou num canto e enrabichou de vez. Nessa noite, ele passou bem,
comeu do bom e do melhor. Quanto ao vaticínio, em curto prazo, só veio a
funcionar uma indústria de doce de goiaba - coisa fina, um manjar.
É
bem verdade que a cidade viveu meses de sofrimento. Os buracos nas ruas, o
motor da luz falhando, os cabos sendo substituídos, os postes sendo trocados,
as instalações mudadas, os casais se aproveitando dos escuros - a vida um caos
temporário cheio de esperança. Berí, moçoila gentil e trêfega, no meio daquela
situação, chegou uma noite em casa, juntou pai e mãe, serviu chá de cidreira (Citrus
medica) e, diante dos dois abismados, alertou:
-
Se essa situação não se resolver logo, fico luichuda!
*******
Manoel
Estrela tinha negócios em Cajazeiras, Souza e São João do Rio do Peixe, cidades
próximas e fraternas - exceto em se tratando de futebol. Ora num jipe, ora num
baio de sua predileção, cam- peava por um e outro lugar, tocando a vida e vendo
as no- vidades, das quais sempre da- va conta.
A
luz desembocou em Souza, é uma maravilha! Um sujeito ficou abestalhado o- lhando a
lâmpada num poste, cegou em quinze minutos. É luz, compadre, é luz!
Em
São Gonçalo, um bêbado foi mijar num poste, tomou um choque, no dia seguinte encontraram
só o montinho de cinza, uma mancha de cuspe e uma ponta de “Astória”.
De
outra feita, saiu no jipe, precisou resolver negócio em Pombal, o veículo
quebrou, uma aperreação:
Depois
é que eu vi, tinha rede elétrica perto e o magnetismo da eletricidade, quando
um polo alternado encontra um contínuo.
O
contínuo do Banco do Brasil fitou-o e disse “vai te lascar, fela da puta!”. E
retirou-se indignado da roda que se formava frente a “Casas Pernambucanas”.
*******
Seria
festa para ficar na história. Na praça da pre- feitura, desde cedo, juntava
gente. O foguetório tinha sido encomendado a especialista. Cedinho, Manoel
Estrela a- çulou o baio. Previa a- glomerações e, a cavalo, se mo- veria mais fácil.
Na entrada da cidade, numa bodega que era parada costumeira, apeou do a- nimal,
tomou uma bicada e en- saiou as primeiras conversas:
-
O funcionário que ligou a chave mestra, em Souza, estava com uma alpercata
molhada, levou meio choque, bastou para ele ficar gago até hoje.
Parecia
se exercitar, apurando-se para um momento especial. A conversa rolava, cada um
contando um caso, acontecidos de outros lugares, a eletricidade atraindo,
misteriosa e poderosa. A imaginação suprindo a ignorância, a fantasia
contaminando a realidade. Um sarará, dos lados do distrito Patamuté, ajeitou o
cigarro de palha num canto da boca e apoiou:
-
Essa tal de eletricidade é pra arrombar. Quando chegou em Patos, na
inauguração, vinha com tanta força que acendeu lâmpada queimada. E o
governador, com uma distância de uns três metros da chave de força, ‘tava com
um cigarro apagado nos dedos que ficou aceso. É potência. Quando vem, vem
mesmo!
*******
Mais
de meio-dia, o sol derretendo os miolos, a cachaça infiltrada no juízo,
burburinho do povo, gritos da meninada, fogos zoando nos quatro cantos, Manoel
Estrela montou e disparou, cascalhos voando pra todo lado num trecho, no outro,
as ferraduras tinindo e tirando lascas de fogo no calçamento. Invadiu a festa
como um raio, puxou as rédeas, o animal levantou as patas da frente, relinchando
frenético e estacou. Manoel olhou em volta, encarou o prefeito lívido de susto
e anunciou aos berros:
A capa do livro |
Tirou
do bolso da camisa um pedaço de arribaçã, a (Zenaida auriculata virgata)
que havia acompanhado a cachaça e proclamou, uma grande admiração, iluminando
os semblantes:
-
Apanhei na estrada. Encostou no fio, fica torrada. De Santo Antônio pra cá, tem mais de
duzentas.
Só falta a farofa. É luz, compadre, é luz!
Como
chegou, saiu, esporeando, o tropel e afastando-se no rumo da pensão de Edite,
onde costumava terminar essas farras de festa. O vereador Chico Sales, com
quem fazia parelha, ambos com reputação em coisas da noite e de bordel, puxou
as palmas entusiásticas.
Dedicatória do autor |
-
É luz, compadre, é luz!
Um
coro que foi ouvido a mais de légua, quebrando-se nas colinas e espalhando-se,
dilacerado pelos galhos do mo- fumbo (Combretum lepro- sum), no Vale do Rio do Peixe.
1º
lugar no Concurso de Causos
Chesf
50 anos, em 1998.
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