sábado, 16 de fevereiro de 2013

Motor da Luz , do livro "Na Força da Lua: contos e pretextos"

    Estávamos no final de 1957. Em Cajazeiras, alto sertão paraibano, rei- navam, nas noites varridas pelas a- ragens que sobravam do Araripe, o mo- tor de luz e Edite. Ela, como rainha de outras artes, dona de uma pensão de mulheres. No começo da noite, ao lusco-fusco, o motor era acionado e ofegava até onze horas, espalhando pontos de luz amarela que varavam os escuros. Faltando alguns minutos para ser desligado, a luz sumia por instantes e voltava; aviso para a luz sumia por instantes e voltava; aviso para que todos se recolhessem, procurassem suas casas e os casais se despedissem. Um toque de recolher.
          Durante o dia, a cidade suava. O sol, naquelas para- gens, ficava mais perto do chão. O comércio funcionava devagar, as pessoas procu- ravam sombra. Se havia inver- no, corria dinheiro, a vida se- guia boa, a cidade se levantava. Nos tempos de seca, um in- ferno. Teve gente que viu um teju (Tupinambis teguixim), bi- cho resisten­te ao maior estio, pular de uma oiticica (Licania rigida) da estrada, na bagagem de um ôni­bus que passava para São Paulo, numa seca des­sas. Nessa situação, quando alguém, um dia, anunciou que Cajazeiras iria receber energia elé­trica da usina de Coremas, que mais tarde se integraria ao sistema Chesf, anunciava o come­ço de uma era e o fim de um jugo, o fim das trevas. A luz amarela e fraca do motor da luz daria lugar ao clarão da modernidade. Chico Sales, vereador paparicado entre as meninas de Edite, afeito a prosopopeias, chegou a dizer, à luz de lamparinas, que Cajazeiras, em cinco anos, poderia ser para o Brasil o que Detroit era para os Estados Unidos. Uma rapariguinha re­cém-chegada do Crato, suspirou num canto e enrabichou de vez. Nessa noite, ele passou bem, comeu do bom e do melhor. Quanto ao vaticínio, em curto prazo, só veio a funcionar uma indústria de doce de goiaba - coisa fina, um manjar.
É bem verdade que a cidade viveu meses de sofrimento. Os buracos nas ruas, o motor da luz falhando, os cabos sendo substituídos, os postes sendo trocados, as instalações mudadas, os casais se aproveitando dos escuros - a vida um caos temporário cheio de esperança. Berí, moçoila gentil e trêfega, no meio daquela situa­ção, chegou uma noite em casa, juntou pai e mãe, serviu chá de cidreira (Citrus medica) e, diante dos dois abismados, alertou:
- Se essa situação não se resolver logo, fico luichuda!
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        Manoel Estrela tinha negócios em Cajazeiras, Souza e São João do Rio do Peixe, cidades próximas e fraternas - exceto em se tratando de futebol. Ora num jipe, ora num baio de sua pre­dileção, cam- peava por um e outro lugar, tocan­do a vida e vendo as no- vidades, das quais sempre da- va conta.
A luz desembocou em Souza, é uma maravilha! Um sujeito ficou abestalhado o- lhando a lâmpada num poste, cegou em quinze minutos. É luz, compadre, é luz!
Quando as instalações já estavam pra cá de Marizópolis, ele chegou contando:
Em São Gonçalo, um bêbado foi mijar num poste, tomou um choque, no dia seguinte encontraram só o montinho de cinza, uma mancha de cuspe e uma ponta de “Astória”.
De outra feita, saiu no jipe, precisou resol­ver negócio em Pombal, o veículo quebrou, uma aperreação:
Depois é que eu vi, tinha rede elétrica perto e o magnetismo da eletricidade, quando um polo alternado encontra um contínuo.
O contínuo do Banco do Brasil fitou-o e disse “vai te lascar, fela da puta!”. E retirou-se indignado da roda que se formava frente a “Casas Pernambucanas”.
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       Seria festa para ficar na história. Na praça da pre- feitura, desde cedo, juntava gente. O foguetório tinha sido encomendado a especialis­ta. Cedinho, Manoel Estrela a- çulou o baio. Pre­via a- glomerações e, a cavalo, se mo- veria mais fácil. Na entrada da cidade, numa bodega que era parada costumeira, apeou do a- nimal, to­mou uma bicada e en- saiou as primeiras conver­sas:
- O funcionário que ligou a chave mestra, em Souza, estava com uma alpercata molhada, levou meio choque, bastou para ele ficar gago até hoje.
Parecia se exercitar, apurando-se para um momento especial. A conversa rolava, cada um contando um caso, acontecidos de outros luga­res, a eletricidade atraindo, misteriosa e pode­rosa. A imaginação suprindo a ignorância, a fan­tasia contaminando a realidade. Um sarará, dos lados do distrito Patamuté, ajeitou o cigarro de palha num canto da boca e apoiou:
- Essa tal de eletricidade é pra arrombar. Quando chegou em Patos, na inauguração, vi­nha com tanta força que acendeu lâmpada quei­mada. E o governador, com uma distância de uns três metros da chave de força, ‘tava com um cigarro apagado nos dedos que ficou aceso. É potência. Quando vem, vem mesmo!
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       Mais de meio-dia, o sol derretendo os miolos, a cachaça infiltrada no juízo, burburinho do povo, gritos da meninada, fogos zoando nos quatro cantos, Manoel Estrela montou e disparou, cascalhos voando pra todo lado num trecho, no outro, as ferraduras tinindo e tirando lascas de fogo no calçamento. Invadiu a festa como um raio, puxou as rédeas, o animal levantou as patas da frente, relinchando frenético e estacou. Manoel olhou em volta, encarou o prefeito lívido de susto e anunciou aos berros:
A capa do livro
A danada vem aí! Saímos juntos de Marizópolis, ela perdeu um pouco de força na Serra da Arara, senão chegava primeiro que eu. Quan­do passa, o fio fica feito brasa. É luz, compadre. É luz!
Tirou do bolso da camisa um pedaço de arribaçã, a (Zenaida auriculata virgata) que havia acompanhado a cachaça e proclamou, uma grande admiração, iluminando os semblantes:
- Apanhei na estrada. Encostou no fio, fica torrada. De Santo Antônio pra cá, tem mais de duzentas. Só falta a farofa. É luz, compadre, é luz!
Como chegou, saiu, esporeando, o tropel e afastando-se no rumo da pensão de Edite, onde costumava terminar essas farras de festa. O ve­reador Chico Sales, com quem fazia parelha, ambos com reputação em coisas da noite e de bordel, puxou as palmas entusiásticas.
Dedicatória do autor
     Ao entardecer, de repente, o povo já cansan­do, a luz fi- nalmente chegou, ofuscante e mágica. O povaréu, em u- níssono, gritou, reanimando- se:
- É luz, compadre, é luz!
Um coro que foi ouvido a mais de légua, quebrando-se nas colinas e espalhando-se, dila­cerado pelos galhos do mo- fumbo (Combretum lepro- sum), no Vale do Rio do Peixe.

1º lugar no Concurso de Causos
Chesf 50 anos, em 1998.

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