segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Causos bizarros que não podemos esquecer!

Valdeniza e filha
Vendo uma postagem de Anacleide Rolim aqui no blog, a qual só conheço de vista, lembrei de uma estória que minha esposa (Valdeniza Rolim) que estudou com uma das Anas Rolim (não sei qual das duas irmãs Anacleide ou Anacélia), no colégio N. S. de Lourdes em Cajazeiras nos anos 60 e por vezes ia estudar na casa delas.
Contou-me o causo, numa dessas noites quando os casais, que não achando o que fazer, se danam a ciscar lembranças de antanho.
Enfim o causo foi sobre um galinheiro que existia no nível térreo dos fundos da mansão Rolim na rua Vitor Jurema (todo cajazeirense se lembra), antes da família ir embora para o Maranhão.
Disse-me ela que, no galinheiro eram criadas muitas galinhas de capoeira, na engorda à base de milho. Tadinhas das bichinhas, à espera do domingo, para serem saboreadas em lautos almoços.
Mas, embora presas, eram galinhas felizes, poedeiras diárias de saborosos ovos de gema amarelinha.
Entre as penosas, havia uma que parecia ser a rainha do pedaço, folgada, mandona, pois era a mais paparicada (devia ser a que botava ovo prá Claudiomar).
Ficava a meninada esperando a hora da dita se ajeitar no ninho prá depois de uns quinze minutos sair pular cantando:
- Cocó dé.... Cocó dé... Cocóo dé...
Então, sem se preocupar com o dilema da casualidade da expressão:
 O QUE VEIO ANTES, O OVO OU A GALINHA?
Fazia-se também a coleta dos Gametas de ainda quentinho das outras e corria-se para preparar e saborear.

1963: Turma Monsenhor Vicente Freitas - Diocesano Padre Rolim




sábado, 26 de dezembro de 2015

CAJAZEIRAS E SUA HISTÓRIA: CRIAÇÃO DA FREQUEZIA DE NOSSA SENHORA DA PIEDADE



Minhas lembranças de Cajazeiras

por Liduina Araujo de Oliveira
Quem não se lembra dos bons tempos do início da adolescência, meia menina, meia moça. As lembranças dos antigos cinemas trazem muitas saudades.

 Recordo quando saía do Colégio Nossa Senhora de Lourdes cantando toda orgulhosa no Coral e quando saía do colégio no início da Praça João Pessoavia logo o cartaz do Cine Éden encostado no primeiro poste da avenida.
Ah, como era bom! Ver a meninada na maioria gritaria e assovios que doíam os ouvidos, levantando e baixando de vez o assento da cadeira para aumentar o barulho, bom demais, jamais vou esquecer estes momentos.
Também tinha o Cine Pax e o Apolo no prédio da Rádio Alto Piranhas. Lá no Pax a meninada começando a namorar ficava nas cadeiras lá atrás para ninguém olhar. Quem chegasse primeiro guardava a cadeira para o outro, assim também no Apolo nas cadeiras do primeiro andar.
Pena que papai não deixava ir muito ao cinema. Outra coisa, eu nunca deixei algum namorado pagar minha entrada, eu achava feio, papai sempre me dava o dinheiro para pagar. 

 Ah, sim quem não se lembra na porta do Cine Éden, várias banquinhas vendendo juquinhas, pipocas, rolete de cana, a gente fazia a festa. Seu Tinino com a sua caroça, também vendendo. Seu Carlos Paulino bem na porta, sério acompanhando o movimento.
São tempos que não esqueco jamais!

sábado, 19 de dezembro de 2015

MEIA DÉCADA SEM DR. EPITÁCIO LEITE ROLIM: Epitácio: um semeador de esperança no coração do povo

José Antonio Albuquerqu


Homens e bichos, Cajazeiras na década de 20

Capa do livro
1923. Dezembro, 13. S. Luzia. Sábado. Dia de feira.
Cajazeiras. Noite. Oito horas. Na cadeia pública.
Ali estava João Corneteiro. Deitado, de barriga para cima, numa rede fubazenta, dormindo como um porco baé atolado na lama do chiqueiro; de vez em quando, uma grunhidela — íin... O tórax do bicho subia e descia, respirando forte e cheio de saúde. A trunfa preta, anelada e mal com Deus, caía, oleosa e assanhada, sobre a cara mongólica de mestiço. Mestiço amulatado, valentão. Ele fez de sua baeta um travesseiro. Metido numa camiseta de meia branca, lis­trada de roxo, suja, mostrava o abaulado tronco de onça, espadaúdo, braços musculosos com mãos enormes, acavala- das. O cinturão grosso e largo, enfeitado de ilhoses brancos e vermelhos, com fivelão de metal amarelo, passado nas arreatas das calças de brim cáqui, desarrochado, frouxão. A braguilha, desabotoada, exibia, sórdidos, os documentos e as ceroulas de algodãozinho, com o cós bordado de linha verme­lha. Fora da rede, dependuradas, as pernas, unidas, susten­tando uns pés quarenta e dois, esparramados, calçados de alpercatas de rabicho. Agora o pai d’égua roncava — róóó...
Rua Juvêncio Carneiro, aonde ficava a cadeia pública,
foi demolida para a construção da Caixa Ecônomica

João Corneteiro dormia e transpirava. O pescoço de touro des- tilava suor, filtrando gotas escorregantes que se uniam e rolavam, molhando a camiseta. Temperatura do mês da Conceição. Cálida, mor- macenta e inquietadora. Céu carregado, descido, herniado (sic), esma- gando tudo. E o povo dizendo pragas, recla- mando:
Que calor danado! Morre tudo queimado.
    É um verdadeiro inferno. Vai chover!
E João Corneteiro dormia animalescamente, sob a luz safada de um candeeiro, morre-e-não-morre, cheia de besourinhos esvoaçantes e suicidas. A cadeia pública era um grande forno de assar bolos. E o vale do rio do Peixe uma fornalha de fogo invisível.
No meio da rua, passou um lote de jumentos, correndo, viçando, desembestado, em brinco sexual, deixando atrás uma nuvem poeirenta. Do calçadão de pedra e cal da cadeia, soldados e presos, embrulhados nas sombras noturnas, algazarraram (sic):
    Oh! pestes! Respeitem as famílias.
    A polícia num desarma esses cangaceiros!
    Isso é com o prefeito...
    Esses imorais deviam usar calçolas!
Homens e sombras, na escuridão, desataram gargalhadas gostosas e debochadas. Continuaram conversando — histó­rias de homens valentes, de cangaceiros, de coronéis, de com­bates, prisões e volantes policiais. Um soldado dramatizava:
    De uma feita fui fazer uma diligência no comando do sargento Elias na serra da Arara. Havia um peste lá que estava comendo bode alheio que nem uma onça vermelha. Um tal de Chico Surra. Se chamava assim porque era acos­tumado a dar surra em cabra. De madrugada a gente fez o cerco da casa. Aí, eu bati na porta da frente chamando:
    Seu Chico! Seu Chico!
    Uma voz grossa respondeu: Quem é lá?”
    Aí, eu respondi: É de paz!  É a po-lí-cia!
    Aí, houve um silêncio danado. Tudo morto.
    Eu repeti: É de paz seu Chico. É a po-lí-cia!
    Aí, demorou um pedaço e depois ele falou:
“— Não abro minha porta não. Bote dentro!”
— Aí, eu disse: A gente quer tomar água. Seu Chico! Calma, seu Chico! Deixe de desaforo! Sua casa está cercada pelo delegado e vinte praças. É melhor o senhor se entregar...
— Houve um silêncio cachorro. A gente ficou esperando. Nada. Conversavam baixo dentro de casa. Perdi a paciência e Toquei o coice do rifle na porta — bá-bá-bá ... bufo! A porta caiu dentro. E eu gritei, amparado na parede:
—    Vão saindo os machos! E manejei a alavanca do meu papo-amarelo de doze tiros — rá-rá-rá, botando bala na agulha.   
—    Passou um pedaço. Saíram três homens. Depois três mulheres. Aí, o dia vinha clareando. O sargento mandou dar uma busca dentro de casa e os soldados trouxeram uma ruma de couros espritada que estava escondida debaixo de uma cama de vara. Aí, o sargento se chegou pra perto dos homens, perguntando:
“— Quem é seu Chico Surra aqui?”
“— Sou eu” — disse o velho, meio assado.
“— O senhor cria bode?”
“— Crio, sim senhor” — respondeu o velho.
“— Como é que prova?”
",— Provo com a vizinhança.”
“— Levem ele de casa em casa, trazendo essas pessoas pra aqui. Se for  mentira, mando meter o couro, viu?!”
— O Chico Surra ficou embaraçado e disparou num chororô. Os filhos também. As mulheres. Todo mundo. Aí ...
Um preso chateou a história:
—    A polícia também?
—    Que polícia, seu peste! A família. Você já viu soldado chorar?! Você é um jumento. Aí, o sargento se zangou:
“— Você está mentindo, velho desgraçado. Passem a corda nos três, pra gente levar pra rua. As mulheres ficam.”
—    Aí, eu comecei amarrando os cabras pela cintura feito macacos. Pois, aí, um bode berrou — bé-é-é-é! ... Aí, o sargento me mandou espiar, e eu fui e trouxe três cabras e um bodinho, que estavam amarrados por trás de uma cerca. Aí, o sargento ficou bem mansinho, perguntando:
“ - A quem comprou estes  bodes, seu Chico?”
—    “Foi um homem que deixou aqui.”
—    “ Como é o nome desse homem?”
—    “    Num sei. Ele num disse.”
—    “    Que não disse, velho ladrão e mentiroso. Dê umas lapadas neste cabra sem-vergonha, Coqueiro!”
—    Aí, eu larguei o diabo nele com um chicote de três pernas - lápo-iápo-lápo... E o peste chorando e gritando: Valha-me Deus! Valha-me Nossa Senhora!”
—    E a macaca caindo no lombo dele. Só parei quando o sargento mandou. Aí ...
—    Um preso chateou novamente:
—    O pobre homem pedindo em nome de Deus e Nossa Senhora e você não atendeu?! Virgem!
—    Vai pro diabo. Já viu ladrão ter Deus nem Nossa Senhora?! Ele devia ter se lembrado deles era na hora do furto ... E aí, o melhor foi, depois, no meio do caminho. O sargento mandava o Chico Surra meter o dedo no cachimbo das cabras e cheirar. E aí, perguntava com raiva, experimentando :
—    “— Cheira ou não cheira? Responda!”
—    “— Cheira não senhor.”
—    Os ouvintes gargalhavam, aparteando:
—    —    ôh! negócio desgraçado! Morria mas não fazia!
—    Que sargento perverso! Vôte!
O soldado ria e gozava:
—    Pare. Deixe eu continuar minha história. Aí, o sar¬gento ralhava com o infeliz das costas podres:
—    “Experimente de novo para ver se cheira agora. Faça. Vamos seu cara de macaco velho! Logo!”
—    O infeliz, careteando, metia o dedo no cachimbo da cabra e cheirava. Respondia, chaleirando o sargento:
—    “Agora cheirou, sim senhor.”
—    Você já viu cachimbo de cabra cheirar, cabra velho safado, mentiroso?! Dê umas lamboradas nele, Coqueiro!”
—    Eu, aí, metia o relho — lápo-l-á-p-o ... Aí, o velho se enroscava todo, tremendo, gritando...
—    E os filhos do velho? — interrompeu o soldado Pancada, riscando um fósforo e reacendendo um toco de cigarro.
—    O sargento mandou que eles fizessem o mesmo serviço, e na peia. A gente ia a cavalo e os presos a pé. Os cabras choravam que nem olho d’água. Cheiraram cachimbos de cabra e apanharam até chegar na rua. Quando foram soltos, caíram no oco do mundo até hoje. Foram furtar bode no inferno da pedra. Serviu de remédio. Peia tem endireitado muita gente ruim. É um santos-óleos.
Um jumento ornejou por trás da cadeia — ann-ín-on ín-on-ín-on ... Outros retribuíram, distantes. Um preso disse:
—    Os relógios dos jumentos bateram nove horas. Cadê o corneteiro? O tempo está se tramando. Uns relampinhos no nascente.
—    Vamos entrar, cambada. Acorde aquele bebão, Curicaca, pra tocar recolher — comandou o soldado Coqueiro, bocejando. Homens e sombras movimentaram-se na meia-luz.
O preso foi ao portão e chamou alto:
—    Corneteiro! Acorde homem! Tá na hora!
—    João Corneteiro se remexeu na rede, bufou-se todo, estremunhado, levantando o tronco para indagar:
—    Que que há?
—    Nove horas. Os jumentos do seu Henrique Leitão já bateram. Você pensa que cachaça tem cabelo?
—    Vai pro diabo, negro bosta! — replicou, pulando da rede e arrepanhando a gaforinha. Espreguiçou-se todo. Cuspiu na parede, babento, enquanto afivelava o cinturão. Pegou a corneta, da cor de ouro e espelhante, que estava enganchada 110 armador, saindo para o calçadão. Deu outra cusparada. Encheu os pulmões do ar quente da noite. Ajeitou o bocal da corneta nos lábios, soprando com raiva, ressacado da bebedeira da feira:
—        Tá-tá-rá-tá-tá-rá ...


   O vento Aracati foi chegando também e agarrou o toque de recolher, que estalou seco e estridente, e saíram os dois, galopando, redemoinhando, misturados, ciscando e voando o lixo da cidade. E uma onda de poeira e música se levantou, rolou nas ruas, penetrando nas casas, nas bodegas, na farmácia, subindo e descendo ladeiras e morros até os arrabaldes — Matança, Cachimbo Eterno, Emboca, Açude Grande, Casa da Caridade, Colégio, Açude Velho, Cabelão, Serrote, Recreio, Antero, Capoeiras, Jatobá e Curicaca. O povo se agitou, disciplinado, como se fosse de quartel, carregando cadeiras para dentro de casa, cortando conversas, chamando meninos brincalhões à rede, fechando janelas, portas, com violentos e tumultuosos baticuns — pei-pá-pei-pá-pá-pei ... Parecia tiroteio entre soldados e cangaceiros.
     —    Era assim: cacá-cá-cá-c-á-á-á ... — foi a negra Raimunda do Nascimento, largando a última gargalhada. Encerrava seus comentários sobre a vida alheia, na Praça da Matriz.

    Nas esquinas, a luz dos lampiões de querosene morria na hora marcada. A lua, envolvida num lençol de nuvens rotundas, divertia-se, ameninada, de esconde-esconde, perseguida por relâmpagos. O céu ficando escuro, enfarruscado. O calor aumentava.
    O silêncio foi mastigando a cidade, engolindo-a, devagarinho (sic), quebrado, ali e acolá, por latidos de cães e risadas azarentas de corujas da igreja, em passeios e farras, buscando a capela do cemitério. A cidade rezava aos pés dos oratórios, pedindo a Deus chuva, paz e felicidade.
     Mulheres cuidadosas esperavam de camisola, maridos retardatários e desabusados. Assombradas, nervosas, escuta¬vam uivos agourentos, danados, de cachorros, cocorocós de galos fora-de-hora, anunciando desgraças, moças furtadas, lobisomens e burras-de-padre. O soldado sem cabeça dando carreira em gente no caminho do cemitério.
Meninos vadios, de pés grudados, enfadados, dormindo e crescendo, sonhavam subindo, subindo grandes alturas para, depois, de lá despencar com solavanco na rede, acordando-se, aliviados; meninos viciados das brincadeiras de luta entre soldados e cangaceiros; de jogar bofetes e pedradas; de lavar cavalos e tomar banho no açude Grande, sacudindo galinha-cheia; de gritar “bicheira”, palavrões e coisas feias; de dar nós em roupa na hora do banho e depois mangar da vítima, desatando-os nos dentes, aos berros — “comendo corredor!”; de jogar lama nos que saíam banhados e fazendo reparos ao crescimento do sexo — “chegando terra no pé do milho!...” “está empenando!...”; de roubar fruteiras e pular muros do Colégio Padre Rolim e cercas do sítio Sr Zuza da Baixa Grande; de ir às aulas da escola pública do professor Crispim e apanhar de palmatória, sob puxavantes de orelhas e piparotes; de jogar pião, manja, castanha de caju, academia, urubu cangueiro, quatro-cantos, chupando balas de cumaru de dona Zefinha de Mata Fresca; de apostar tostão, como nenhum teria coragem de chegar à porta da igreja, dar as costas, agachado, batendo no cangote e dizendo em voz alta — “macaco preto, salte aqui no meu tuntum!”; de espiar as “bichas” dos coronéis na rua dos Sete Pecados, pintadas, janeleiras, espalhafatosas, cantando alto e fazendo pique às mulheres honestas que rezavam na igreja, pertinho, humilhadas com as mancebias dos maridos; de ouvir um duelo de orações e pragas; de auscultar um rumor de briga entre a virtude e o vício — as donas Toinhas e as Chicas Pau Velho.
      —    Meninada dos diabos! — diziam.

* * *
Dez horas.
Os lampiões tinham morrido. A lua, mandingueira, de cara opilada, espionava a cidade. Estrelas, namoradeiras, faziam pisca-pisca, passeando no céu enfeitado. Relâmpagos caracolavam no nascente, como cobrinhas de fogo-fátuo, corredeiras, adornando o colo de nuvens escuras e gorduchas. O vento soprava forte, guinchando por baixo das portas, e nas ruas estreitas e tortuosas, levantava remoinhos, avoando folhas velhas, papéis, lixo. Homens e sombras, noitibós, desguiados pela vida aventureira, marchavam em procura de casa, acossados pela cachorrada de beco. Na praça Dr. Jurema, jumentos roíam troços de capim-de-burro, secos e amarelados, e outros fornicavam fêmeas aos coices e dentadas. E no interior das casas, homens e mulheres, quentes de amor e calor, escutavam o rumor da chuva se chegando, sob cipós de fogo dos relâmpagos e o ribombeio (sic) dos trovões no pé das serras. A cidade velava. A primeira chuva ia cair. Boa experiência de inverno. De S. Luzia.
O portão do muro roncou, raspando a pedra do velho batente. Esgueirando-se, Moisés saiu na rua dos Sete Pecados, espionado pelas almas do oitão da igreja. Apertou o cubo do revólver para se sentir mais corajoso. Investigou a rua deserta. Meteu os dedos no buraco do portão, puxando-o com força, e ele roncou novamente. Levantou a gola do palitó (sic) e desceu as abas do chapéu de massa, preto, e enfiou as mãos nos bolsos da calça, e caminhou, cortando ruas e becos, em busca da zona do Emboca. Ouvia a voz menta] de Dorinha, chamando-o para o amor. Marchava arrastado por forças glandulares de um chamego aos vinte anos de idade, espezinhando os conselhos do velho tio — o homem mais santo da cidade.
Firmino Justiça contava o apurado da bodega. A luz prateada do carbureto projetava, nas paredes da Rua Estreita, um clarão retangular, onde a sombra do bodegueiro se balançava no meio. De olhos esgazeados, assustou-se com a entrada repentina de Souza Potassa, deixando o bolo de dinheiro cair da mão.
—    Tá com medo, velho?
—    Não foi medo. Foi susto. Que é que há?
—    Quero cana prá festejar a chuva que vem no nascente. Você não viu o preparo não? É de arrombar!
—    —Quando chegar, diga mestre.
—    Mestre, uma minhoca! Aí, chegou! Passeio o dia caiando feito diabo! Vida de pobre é como buchada... só presta com cachaça. A noite de hoje é minha. Vou tomar um pancão.
Um relâmpago ciscou doidamente pela porta da rua. Firmino apagou o carbureto, assombrado:
—    Ave-Maria! Ave-Maria!
Um trovão pipocou logo, rasgando — tátárátátúmtátá... Tilintaram as garrafas nas prateleiras e o chão da cidade estremeceu. Potassa virou o copo, cuspinhou, desafiando o temporal:
—    Eita! É o pai da coalhada! Arrocha! Pinica!
—    Cala a boca, pé-de-cana!
Outro relâmpago caqueou, em zigue-zague, as casas, as ruas e a cidade, procurando os valentões da terra e os encontrou, todos, acovardados; bateu nos peitos, vitorioso, e saiu zombando com risada alta, trovejante — tá-tá-t-á-taratá-tá-á ... Firmino, acocorado e escondido, sob o balcão, requereu socorro:.
—    Santa Bárbara e São Jerônimo!
O céu ficou mais revoltado e cobriu a cidade de cobras de fogo, bombardeando o ventre da terra; ela, satisfeita, tremia relevos e curvas geológicos do seu corpo estrutural, ge¬mendo agonias vespéricas (sic) de um parto invernoso. Homens e bichos, aterrorizados, tremelicavam. Cajazeiras rezava, queimando ramos bentos da igreja da Conceição. E Sousa Potassa, abatido e desmantelado, benzeu-se e labiou (sic) um “Virgem Nossa Senhora!” ancestral e sufocado. O ambiente fedeu a chifre queimado e nos telhados zoaram pingos de chuva, gordos e pesados — té-té-téé-tê-têtêtê... O céu ia matar a sede da terra.

* * *
Padre Anselmo
         
Onze horas. Chovia e ventava, tempestuosamente. Relâmpagos e trovões brabos, de estalos e redondos, açoitavam o céu e a terra do padre Rolim. Eram os donos da cidade. Não respeitavam os direitos do povo. Espiavam, entravam nas casas, por baixo de portas, janelas, frinchas, buracos de fechaduras e telhados, reparando tudo, como policiais experimentados, buscando crimes e criminosos. Banhando-se, a cidade, de olho aberto, escutava, misturando medo e alegria, orações e pecados. E lá fora, a água rolava nas ladeiras e grotas, choando (sic) e carregando basculhos.

     —    Homens, seminus, empunhando lamparinas, caçavam goteiras e derrames que poderiam estar molhando caixões de arroz, de farinha, e os paióis de feijão, de milho e rapaduras. Arrastavam armários e baús de roupa, revistando quartos, despensas e cozinhas, de onde corriam ratos e baratas, assustados e às quedas.
Doutor Higino, de camisão e candeeiro aceso, examinava a farmácia. Uma goteira escorria sobre o balcão. Colocou uma bacia de porcelana, esverdeada, aparando a água que ficou caindo e musicando — tin-tó-tin-tó-tin-tó... Andou pelo corredor; foi até à sala de jantar, e aí, empurrou a porta do quarto de Moisés. Levantou a luz à altura da vista, verificando  a rede do sobrinho, vazia. Não tinha mesmo o que fazer. Coçou a cabeça e mexeu os óculos, reprovando a ausência com um balançado de cabeça, e falou sozinho, triste e desolado:
—    Aquele não tem jeito não. Puxa ao pai.
Voltou, viu a bacia juntando água. Parou. Resolveu sentar-se na cadeira de balanço, esperando o fim da chuvarada.
—    Na bodega, sob a luz de uma vela de cera de carnaúba, fracalhona, Firmino, paciente, escutava a conversa de Potassa, pingado e filosofista (sic), sentado num saco de farinha:
—    Seu Firmino, fique sabendo, que neste mundo velho, o que vale é o zé-dinheiro. Esse sujeito tem força prá burro. Faz de um quadrado, um redondo. Vira tudo pelo avesso. Faz de bicho, gente. Casa e batiza sem ser vigário. É ou num é?
—    É mesmo. Sei disso. Mas o saber vale mais.
—    —O saber ajuda alguma coisa. Olhe, não há coisa mais triste do que um doutor pobre, sem zé-dinheiro. E ele dá um fogo danado. Já ouviu falar no fogo do dinheiro? Pois um cabra foi comprar uma rapadura, mas o dono da bodega estava ocupado. Aí, o sujeito foi e se sentou numa mala. Aí, o bodegueiro, depois, perguntou:
“— Queria alguma coisa?”
“— Queria sua filha em casamento!”
“— Tá doido?! Que diabo é isso? Levante-se daí!”
—    O cabra se levantou e disse encabulado:
“— Me desculpe! Queria uma rapadura fiada...
—    Pois a mala estava cheia de zé-dinheiro que botou fogo no sujeito... — e riu, sacolejando o corpo.
—    E o fogo da cana? — criticou Firmino.
—    E o fogo da carne? E o fogo da mulher? Esse mundo é uma fogueira! — gritou fulo e cuspiu pegajoso no chão.
João Corneteiro, sentado na rede, cortava fumo em cima de um tamborete. A chuva caía gostosamente e as biqueiras derramavam água aos borbotões. Fechou o cigarro, depois de passar a língua no papel, acendendo-o no lume da lamparina. E ficou a fumar, pensando na vida. Já ia com dois anos na polícia sem receber nenhuma fita. O padre Sá, seu protetor, deputado, garantiu-lhe, logo, duas fitas de cabo quando descesse à capital. Aquelas duas fitas encarnadas pregadas no azul-marinho. Sentiu-se já importante, recebendo continências dos soldados, mandando:
“— Vá comprar um maço de cigarros e volte logo.”
Pediria para ser destacado em S. João do Rio do Peixe, e lá poderia viver na casa do padre, dando ordens e feito cabra de confiança dele. Não gostava de Cajazeiras. Os coronéis eram mandões e desmoralizavam os atos da polícia. Prendia-se um capanga arruaceiro, que queria acabar com a feira, aí, chegava seu coronel Fulano e mandava soltar o peste! Os paisanos insultavam os soldados, e sempre tinham razões sobradas. O delegado, major Sobreira, não dava prestígio à tropa. Os valentões, armados, encachaçados, pisando nos pés dos soldados. Não, não aguentava isso. Com o tenente Benício a coisa foi diferente. Chegou com a volante e arrochou a cabroeira dos coronéis. Empiquetou (sic) os becos de entrada da cidade e danou-se a tomar facas de ponta, pistolas, garruchas e punhais da capangada, obrigando-a até a meter as fraldas das camisas por dentro das calças, aos gritos — “Passe o pano, cabra!”. Cortou trunfas e bigodões de arame. Vinte prisões. O facão rabo de galo cantou direito. Choveu telegramas para o Governo, denunciando o tenente e exigindo a retirada imediata da volante. Paisanos marcaram o prazo de vinte e quatro horas para ela sair da cidade. Trocaram recados atrevidos. A cabroeira, emburacada nas casas dos patrões, aguardava ordens de enxotar a polícia. Coronel Sabino, chefão, deputado, prefeito, mandou chamar o tenente para um entendimento, mas este não o aceitou. Reuniu a volante e saiu da cidade, estalando a corneta. Era mesmo macho o tenente. Homem de enganchar. E aquele Moisés? Sacana! E João Corneteiro, bilioso e abofado, soliloquiou (sic):
—    Me paga ainda...
Sacudiu a ponta do cigarro. Ficou esperando que a chuva parasse e ir juntar-se à ronda da cidade.
Onze e meia.
Nua, debaixo do lençol, saciada de amores, Dorinha dormia, feliz, numa rede de casal. E Moisés, ao lado, em cuecas, acordado, ouvia o movimento da chuva. Pensava no tio. Naquele rosto gordo de homem pacato e bom. Incapaz de ofender uma mosca. Poderia estar rico, riquíssimo, se a goela do fiado não engolisse tudo, lambendo os beiços. O tio nem tomava nota. Os espertalhões exploravam o velho dizendo de cara lisa:
“— Minha conta, doutor.”
“— Lembre-se você. Não tomei nota.”
O devedor, franzindo a testa e empurrando o chapéu para trás, dava um balanço ligeiro:
“— Deixe ver. Quinze mil réis.”
“— Tá bom” — concordava, olhando por cima dos óculos, satisfeito, com aquela cara de santo. O tratante, então, remendava, aumentando mais o prejuízo:
“— Bem, agora tome nota, preciso de um vidro de “Saúde da Mulher”. Pago tudo na outra feira.”
“—    Tá bom. Não há vexame.”
Moisés reparou a mulher dormindo. Era seu primeiro xodó. Começou numa feira joanina (sic), no portão do comércio, quando havia saído para trocar duzentos mil réis. Viu aquela mulher, sacudida, bonita, vestindo róseo, pernas grossas e peitos bicudinhos, e uma cabeleira comprida, descendo nas espáduas. Ele, enxerido e gaiato, chegou-se:
“— Lica veio também no trem?”
“— Que Lica? Ah! sim, entendi...” — riu, brejeira. Houve barulheira dentro do mercado. O povo saía, correndo. Dorinha, apressada, foi dizendo:
“— Até logo. Cresça e apareça.”
“— Adeus. É hoje mesmo.”
Recebendo encontrões, Moisés foi saber o que havia. Num recanto do mercado, viu um mulato grandalhão, de trunfa assanhada, recostado à parede, cercado por praças, reagindo (com um punhal esfolado na mão, furioso, gritando:
“— Num entrego. Quem encostar morre! Sou homem! Sou do coronel Zé Inácio dos Barros! Como no punhal!”
A polícia ia arrochando o cerco, devagar, palmo a palmo, com o olho pregado na arma e empunhando facões. Aconselhava:
“— Entrega o punhal, cabra!”
“— Venha tomar, macaco! Feias!”
Quatro contra um. Um soldado, amparado num arco do pátio, de surpresa, arremessou um golpe de facão rabo de galo na cabeça do mulato, e o sangue estourou, cobrindo-lhe o rosto. Já ia repetir o ataque, quando foi impedido por Moisés, que, indignado, passou-lhe uma gravata, subjugando-o, caindo, e ambos rolaram pelo chão. A rixa atraiu a cabroeira encachaçada e começou um fuzuê entre paisanos e soldados. Bancas de café e bolo foram viradas e as mulhe¬res fugiram. Moisés, desenvencilhado do soldado, comandava a luta:
—    Couro nestes mata-cachorros!”
Major Sobreira, chegando no meio do vavavu (sic), aos gritos, pedia, trepado num caixão:
“— Me atendam! Me atendam!”
Sacou o revólver e fez disparos para o ar — pei-pei... Correrias. Os lutadores se desengalfinharam. Havia alguns feridos. A soldadesca, de farda rasgada e desarmada, foi dominada. Desmoralizada. Os sabres estavam em poder dos paisanos. A polícia foi se recolher à cadeia pública. João Corneteiro, enraivecido, discutia com o delegado e apontava para Moisés:
—    “— Foi seu sobrinho o culpado de tudo. Se meteu para defender um cabra ruim. Ele não tinha nada com isso!”.
Dorinha se remexeu na rede e Moisés voltou à realidade. Na murada da matança, a vaca gorda, que ia morrer ao amanhecer, urrava com saudade do curral. Na casa de Maria Cabelão, homens e mulheres, bebidos, farravam, celebrando o início do inverno. E, da Rua do Cachimbo Eterno, vinha música de realejo, animando o forrobodó. A terra molhada cheirava. Dava força ao povo. A alma coletiva se espojava de alegria. Babava-se de prazer.
                                       * * *
   Doze horas. A chuva parou. O nascente estava limpo. Chovia no poente, nas cabeceiras do açude Grande. Da cidade, ouvia-se o ribombar de trovões ao longe, nos pés das serras. Os homens se sentiam fortes e seguros para a luta do ano. Insones, inquietos, fumavam, revolviam-se nas redes, pensando nos trabalhos do inverno. Nos roçados que iriam plantar de feijão, milho, arroz e algodão. No apurado da safra com que executariam seus planos — as brocas, açudes, compras de terras e questões, festas da padroeira, novenas, sambas, casamentos, venda de gado gordo, bebedeiras, farras, mulheres bonitas e boas, eleições, missas, serenatas, roupas novas, pescarias, moagens de cana-de-açúcar no engenho de pau cantador; banhos nos riachos da Arapiraca e Curicaca, no sangradouro do açude Grande e na ponte do Colégio Padre Rolim. E nas quatro grandes festas do Ano Novo, Carnaval, São João, São Pedro e Natal. Dinheiro no bolso das calças, comendo do bom e do melhor. Era o doutor inverno — a chuva caindo no chão, diariamente, de noite e de dia, de tarde, de madrugada, molhando tudo. Molhando a terra, os paus, as roças, as plantas, os homens e bichos. Era a matutada, voltando da feira, tomando chuva e tomando lapadas de cana. Chegando em casa, molhada, fedendo a suor, cachaça e fumo, falando alto e baboso, cuspindo bala, alegre e briguento; falando nas mulheres damas, cheirosas e bonita, provocando ciumada (sic); falando em Maria Cabelão, Raquel do olho de Prata, Adrina, Glorinha... e mais tarde, preacando (sic) a mulher de casa, parideira de doze a quinze filhos, fedorenta, já velha e cansada. Era o rico inverno, trovejante, caindo faísca, fazendo atoleiros, e homens e bichos caindo na lama e achando bom; achando bom o cheiro da terra molhada, viçosa, com as flores de mufumbo a perfumar e abelha chupando o mel e a passarada cantando nos galhos bem-te-vi! Fogo-pagou! vêm-vêm! chover-chover-prá-criar-capim-pro-boi-comer-pro-boi-cagar-prá-nós-comer ... Era o grande inverno das pescarias dos rios cheios e açudes sangrando — xóóó... xóóó... das cachoeiras e locas de pedras dos riachos e córregos; e o peixe subindo e descendo, vadiando, desovando e os homens pescando, matando e comendo, feito uns bichos. Era o inverno do povo trabalhar; a cabroeira dando duro no eito, embrutecida, burra e analfabeta, e os coronéis gritando, zangados:
“— Olhe a vadiação, cabras desgraçados!”
Ali estava o povo acordado, satisfeito, ouvindo o mensageiro da boa nova, que batia palmas em todas as portas. Era o Deus do mundo seco, valendo tudo, valendo mais do que dinheiro. Dele, o povo comia, bebia, vestia, casava e reproduzia. Era a própria vida. E a cidade pensava, recordava coisas, histórias e casos. As ameaças de cangaceiros e bandidos. De Luís Padre, Senhor Pereira e Virgulino Lampião. Dos homens valentes. Do major Canuto, delegado, gritando na bodega, quando um sujeito pedia diferença no preço da mercadoria:
“— Tá preso, cabra filho de uma bosta! Você quer desmoralizar meu estabelecimento!” — e enterrava o punhal de três palmos na madeira do balcão — e ficava de olhos grelados, batendo pestanas e com cara feia de gato do mato. Do major Sobreira, que ficava na porta do cinema, recebendo os ingressos, bigodão e chapéu atolado na cabeça e quando um freguês rogava prá entrar, de graça, e ele batia com a porta na cara, gritando:
“— Ninguém aqui come merda não, seu bosta!”
Do coronel Sabino, de dedos enterrados no colete e bonezinho encobrindo a careca, buchudo e baixote, dizendo aos delegados, seus parentes:
“— Você é bobo, seu compadre! Que exoneração que nada. O senhor não está desmoralizado. Mantenha a ordem! Vá policiar num lugar que não tenha gente grande nem cabra valente, ora diabo! Deixe de ser mole, homem! Que nada! Que matar gente! Vá matar urubu, que estou pagando a quinhentos réis, homem! E limpando a cidade destes  pestes, que quebram e cagam os telhados das casas. Você é bobo, homem! Vá policiar e conte comigo, ora diabo!” — e o compadre saía satisfeito e inchado de prestígio, com vontade de ficar afamado.
—    Do Antônio Jacaré, paroara, que viveu no Amazonas, fazendo presepadas, e agora se vestia de cangaceiro e tomava umas bicadas nas bodegas, desafiando a polícia
“— Não venha que morre! Ninguém toma minhas armas! Afasta prá lá macaco! Manda chamar compadre Sabino, menino! Vai morrer gente, agora! Afasta, afasta... Compadre Sabino!” — e aí encostava toda a Guarda Nacional: major Zé Dantas, Major Sobreira, Tenente Arsênio, major Chiquinho, major Moreira e major João Bezerra. E no fim, a cartucheira era de sabugo, o revólver de chifre e o punhal de tabica...
A cidade não podia dormir. Não era possível não. Como era possível a cidade dormir se o mundão lá fora mandava chuva, que vinha caindo do céu, catucando o povo com a alegria do inverno?! A cidade não podia dormir. Não podia. Dormir como e prá quê se chovia no mundão perdido dos sertões?! Como se dormir com chuva caindo nos telhados e as águas zoando no chão?! Tinha graça?! Os homens dormindo numa hora dessa! Seria até uma blasfêmia contra Deus o os santos! O negócio bom mesmo seria recordar o passado, calcular o presente e o futuro. E contar histórias, casos e coisas, fumando, bebendo, tomando torrado e garrafadas, fazendo serenata, festejando a primeira chuva caída, puxando um cururu teitei... A cidade podia relembrar. Na semana santa, no sábado da aleluia, o negro Heliodoro, bancando o promotor num júri de Judas, fazia acusação em praça pública — ... como já dizia Jota Cristo, o maior advogado do povo — dura lex, sed lex — o galo é duro mas é galo... E este sujeito que está aí sentado é um traidor desgraçado, e como já dizia mestre São Pedro — si vis pacem, para bellum... se ver ele passando, meta-lhe o parabelo... porque Judas era o maior traidor do mundo e dos homens... e das mulheres; delenda Carthago, consummatum est, ecce liomo, errare humanum est e ex toto corde... isto é, senhores do conselho de sentença, este traidor infeliz deve ser enforcado mim cipó de boi...” O padre Anselmo fazia a defesa — "... Não era um traidor não, Judas, e, sim, um predestinado a exercer aquele papel, pois se não fosse assim Jesus não teria sido traído e crucificado... não teria havido a paixão de Cristo... não teria havido o cristianismo para salvar a Humanidade... estava escrito nas Escrituras Sagradas; logo, Judas devia ser absolvido porque foi um instrumento de Deus um terra... aleluia, aleluia!...” — E Judas foi absolvido por 7 a 4 votos, e o povo se revoltou, o pau comeu... e padre Anselmo fugiu, às gargalhadas. Depois vinha o padre Constantino, grandalhão, brigando com as mulheres dentro da igreja, na hora da missa —    “... o diabo, o cão, o Pedro Botelho, se veste também de mulher devota para tentar os padres nas sacristias... As mulheres que estiverem com o sovaco de fora, por aí, nuazinhas, façam o favor de ir saindo da casa de Deus... Puxem daqui! Moças com os peitos de fora, também ... Quem gosta de espiar isso é o diabo, é o cão, é a polícia... Mulher feia e doida fica prá touro... vão saindo, senão eu não celebro a missa...” — e ficava andando no meio da igreja, com esbregues nas mulheres descompostas. Depois, nos dias de feira, lá vinha o negro Juvino, o doutor raiz, ambulante, com um saco cheio de troços, garrafadas, um chifre de boi com torrado e bornais atopetados de raízes, folhas e batatas, falando feito carretilha veloz, das virtudes das suas meizinhas — “... jarrinha, umburana de cheiro, cordão de São Francisco, jalapa, batata de purga, velame, fedegoso, jurubeba, juá, quina-quina, quebra-pedra, pega-pinto, mijoréticos... chapéu de couro, cipó cabeludo e CA-TU-A-BA... o mais famoso elixir dos índios do Amazonas que serve para levantar o moral dos velhos envelhecidos... e dos moços sem força para aguentar o rojão das mulheres fogareiras... Depois, meus amigos, vem o famoso tabaco de chifre, o melhor torrado do mundo... serve para tirar dor de cabeça, dor de dente, dor de mulher, dor de corno, dor de cotovelo...; é o melhor tabaco do mundo, tanto serve para os homens como para as mulheres... tem para todos os tamanhos, grandes e pequenos... aproveita rapaziada! Quem não gosta de tabaco não se salva... sem tabaco a vida não vale nada...; agora vem a afamada cabeça de negro, que serve para a cabeça de nós todos,    porque não é     só negro que tem cabeça... os brancos também tem... se o negócio é na cabeça, experimente hoje mesmo o elixir cabeça de negro, que é cabeça de todos nós ou de    nós todos...    e também o óleo de mocotó    com bu¬chada de    onça preta    e óleo de minhápica com    catuaba, porque, como dizia o poeta que a coisa mais triste do mundo, ó o homem quando envelhece, pois afina a ponta da venta e o tesão desaparece, o pau só marca seis horas e o saco dos culhões desce... e cobra que anda não engole sapo, o é por isso que os homens andam atrás das mulheres... comigo polícia e cachorro é na pedra... ficava feito um galo nos cantos de parede, cacarejando ceácácá.., fazendo roda, já embriagado. Foi preso uniu vez pela volante do tenente Benício, como negro safado e imoral, apanhou e depois fugiu para o Juazeiro do Padrinho Cícero e nunca mais voltou. E os conhecidos lhe falavam de Cajazeiras, o negro dizia — "... aquilo é terra de muro baixo... Mas Deus é tão grande e poderoso que é capaz de fazer uma pedra tão grande para acabar com aquela terra.. . Sodoma e Gomorra foi com fogo, ela será com pedra... terra de muro baixo!...” Depois vinha o carro do coronel Emídio Sarmento, entrando na cidade, correndo, na hora da missa, e o povão fugindo aos gritos — “... lá vai o cão... o cavalo do cão...” e batia as portas. A cidade não podia dormir. Não. Não podia dormir com tanta chuva caída e caindo lá fora, por aqui, por ali e por acolá. Não podia. Dormir como, onde, de que jeito, se choveu logo no dia de Santa Luzia?! Dormir, uma ova! O negócio era ficar acordado, tomando cana, contando casos, inventando histórias, fumando e discutindo as coisas do povo. Coisas da vida. Relembrando os cabras gozados da cidade. Os valentões e os boêmios. Os frouxos e cagadores de goma. Farofeiros e falastrões. Um Arcôncio, cheio de grandes gestos e muita pose, falando alto e exibindo um revolvão e relógio de pulso, para no dia do casamento em Piancó, telegrafar aos amigos — CASEI HOJE POVO EM DELÍRIO...; um major Piano do Ceará, ficando rico e tomando pileque, a repetir — 0 NEGÓCIO É CARRO NA PORTA E BRILHANTE NO DEDO...; um Zé David, conversando difícil para o povo, depois que aprendeu o latinório (sic) da igreja — METO-TE UMA BENGALA FOSFORESCENTE NAS PARTES PUDENDAS, PORQUE SPIRITUM PROMPTUS EST, CARO AUTEM IN- FIRMA... SURSUM CORDA!, e o povo criticando — “me¬nino, traz aí as CORDAS e amarre este peste!”; um tal de Dr. Drauhner, estrangeiro, tipão alourado, barbadão, amigado com a negra Duda na Feira Velha, engenheiro da IFOCS, fazendo coisa e os meninos olhando por baixo das janelas...; de um coronel Matos, montando uma usina de beneficiar algodão, com assombro dos compadres que previam uma derrota ...; um coronel Joaquim Bezerra a condenar a chegada do trem, porque só prestava para trazer os ladrões do Ceará... “de óculos escuros, costeletas e rebenque, bigodinho... um Dr. Jurema, gritando para os compadres — “Olhe, como é, seu diabo, venha logo fazer o inventário, joviu (sic)? Tá roubando os bens dos órfãos! Venha logo ou vá para os infernos! Sim, prá casa do diabo! O juiz daqui sou eu, joviu(sic)?! Vá para os infernos, seiscentos diabos!...”; um D. Moisés, visitando os amigos e parentes para aconselhar, pedindo paz e orando por todos, delicado, manso, humilde e virtuoso, e o povo beijando um anelão de bispo...; de um padre Lopes, esquipando (sic) num cavalo e puxando fogo, chega a poeira cobria ...; do ataque dos cangaceiros Luís Padre e Sinhô Pereira ao sítio Cipó, carregando a mulher de Osório e capando Justino Mané, e Santos Bezerra querendo arquivar os “documentos” dele, no cartório de major Serafim, que havia trazido pendurado numa ponta de vara... De Nèinha, tomando cana e recitando versos, citando frases em latim e francês, blasfemando, praguejando e ameaçando a cidade: “— Sou branquinho da silva, de família boa, louro, bo¬nito, moco, cheiroso, de olho azul. Sou perversinho, malvadinho, perigozinho. Já apunhalei um quadro do Coração de Jesus pelas costas, dei uma pisa num cego e corri com medo de um aleijado. Sou covardinho. E no dia que Cajazeirinha me botar prá trabalhar, eu toco fogo no comércio, nas casas dos riquinhos! Tenho uma rica presa, prá num casar com ninguém! Casa diabo, que eu quero ver!? Nem Deus, nem delegado, nem Zé Dantinha Gato Vermelho me bota na en¬xada, na carroça, no peso. Bem que eu queria ser carteiro, mas num dero. Pois, agora, eu boto o povo prá trabalhar prá mim. Anguzinho, leitinho, coalhadinha, queijinho, galinhazinha... Se não me derem comida, toco fogo no mundo. Riquinho me paga! NEC PLUS ULTRA! Se não me derem comida, eu tiro a roupa, fico nu no meio das mulheres... Néinha tem que ser tratado direitinho, com muito amor, senão, senão... Toco fogo na cidade. Eu queria ser carteiro, cia, mas não me deram. Agora, Néinha não trabalha... Perversinho!” — e arrancava tufos de cabelo dos peitos e braços, rodava uma bengala de arame grosso dos telégrafos nos dedos, feito uma baliza, olhando para trás, e depois disparava numa carreira danada, gritando AU REVOIR!
Do negro Delegado, carregador d’água em jumento, e de pernas caranguejadas, que desaprendeu a falar português nos trabalhos do açude de Boqueirão, quando ali se meteu com os americanos e negros das Bahamas, ficou papagaiando no meio das ruas:
“— Gud naite, iú. Do iú espique, fore iú, mistar Grilo, In loque iú pico fina calamalú. Oil raite, mórni, espica gu In loca tu iú nô foca mim, oil non vaco véia laite iú...
“—. Vai tomar dentro, negro besta do diabo...” — o povo cobria o negro de pragas. Continuou firme, falando inglês até na hora da morte, com febre tifo, e mulher botado vela na mão dele:
—    “— Diga Jesus! Jesus!
—    Nô, du iú espica ingliche ol raite foca mim... Nô raite nô! Oil raite note in cristone..
Do Joaquim Chorão, traduzindo o nome dos amigos para adivinhar o futuro:
“ - Jovenço! Jovenço! Jó, fica pobre que nem Jó, mas vence na política... Serafim... será alguma coisa no fim da vida... Coronel Sabino... será sempre um sabido. Não tem quem tome a chefia dele.”
—    Do velho Lima Botijão e dona Felicidade Borboleta, na ponte do Colégio, com a estudantada gritando à porta:
—    Diga minha gente:
banana não tem caroço,
borboleta não tem dente,
e botijão não tem pescoço!
—    Botijão e Borboleta é o cu da mãe, filho d’égua!” e a velha saía de porta fora com uma vara de cerca , querendo agredir, enquanto o velho espiava, sentado no chão, mouco, sem compreender.
De Pedro Piauí e Joaquim Pajeú, dando alinhamento das ruas, entortando tudo; o velho Rufino, ex-oficial da Polícia de Pernambuco, expulso por ter aplicado algumas chibatadas num filho do Governador, e jogava víspora, afobado, quando perdia e engolia as pedras boas; obrigava os parceiros a jogar a noite toda, com um punhal estrepado em cima da mesa; da bagatela de Chico Italiano; da padaria do árabe João Bichara; de Cazuza Marinheiro, fugitivo do cerco dos Viriatos na serra do Bonga, em Santa Fé; do prof. Crispim, dano bolos de rachar mão de menino na escola do aprende ou rebenta; do cel. Justino Bezerra, esquipando num cavalo alazão, com arreios de prata, e bebendo, os dois, bom vinho português; do Marechal, barbaçudo, respondendo júri, como matador do soldado Henrique numa noite de Natal; dos doces da velha Peneda; de Raimundo Doido, atirando pauzinhos e caretando mansamente; de Januário, alezado, acompanhando a banda de música, fardado, levando um pacote de dobrados; de Severino Riachão, mestre do borbardino; de Mané Borges, coveiro, vendendo melancias e sapatos produzidos no cemi¬tério; do dr. Barreira, curando gente e blasfemando: — “aqui quem cura sou eu! Deus não cura ninguém porque ele nunca existiu!” — e as beatas se benzendo quando passavam por ele; do Dr. Leandro, tomando conhaque e cocaína; do hotel de dona Carmosa e Raimundo Estolano; do Cel. Peba emprestando dinheiro e construindo prédios bonitos, a repetir: “— Menino, mulher e queijo só do sertão... Os ricos dessa rua, tudo me deve e num paga... mulher buchuda num pode negar: fez coisa!...”; do Luís Rolim, gritando nos cafés e bodegas: “— Cajazeiras do Povo! Não é mais dos Rolins! O Brasil precisa de Cajazeiras! E Cajazeiras não precisa do Brasil!”; do velho João Bezerra, querendo saber todas as no¬tícias da cidade e ouvindo:
“— Foi tiro como diabo. Mataram uns dez...
—    Onde foi isso, meninos?
—    Foi no cinema, Coronel.
—    Que cabras bêstas! Safados!”
Do padre Anselmo, suspenso das ordens, foi vender ovos e galinhas nas ruas, como meio de vida; o bispo mandou chamá-lo:
— O senhor perdeu o juízo?
—    Ainda não. Mas perdi meu emprego... ”
A cidade não podia dormir com a chuva caída. E lembrava sua gente querida — Chico Mucuim, fazendo numa tira de papel uns bonecos pintados, em quadrinhos, contando uma história seriada com os tipos populares da terra, e pas¬sava a fita num carretel, velozmente, animando as figuras, e cobrava cem réis de cada espectador; fazia mágicas na feira e nos palcos do cinema, para desmoralizar os artistas de fora; o velho Barba de Sonhim, ex-bandoleiro e professor de por¬nografia; Piau Sabão, botando apelido em todo o mundo — “... quando chegar na casa de Zé Três Por Dois, vire à es¬querda, passando a casa de Chico Meio-Quilo, e sai na casa de Papagaio de Papel, bem em frente da de Joaquim Espera, perto da de Tapuru de Abóbora...”; os italianos Fioritos e Finizolas, com as mulheres gritando — “... pega la cata pela raba e tira no méo da rua, Rafaela... Bambina, diabola!”; Joca Bozeira, o maior homem da cidade, sujo de sangue de tripa, risão idiota numa cara cabeluda e sapecada; e Pedro da Bufa, Luís Boca Aberta, Pedro Torto, soldado Gregório, o cabra mais frouxo do mundo, e negro Cícero Ramos, fundador do “Gato Preta”; os meninos-moleques — Chico e Ernesto de Serafim, os filhos do Dr. Ferreira, Chico, Alírio e Justino; Mané de Sá Loriana, Zé Angélica, Mané Vicente, Chico Pé Torto, Zé Augusto, os Andriolas e os filhos de Maria Italiana, Lídio e Veci; o negro Cupira, Edmundo, Vencinho, Belinho, Estelício, Almeida, Toinho de Mestre Enéas, Zuquinha, Nelson, Cezar, Luís Bolo Cru, Zé Ventura e os filhos do Dr. Jurema; brincadeira de soldados e cangaceiros, artistas e bandidos de cinema; os filhos de major Galdino, Gineto e Valdemar, dois magrelos; Tota num velocípede...
A cidade não podia dormir. A chuva foi grande. Relembrava as festas do Centenário da Independência. Major Lucas e o major Chiquinho, fardados da “Guarda Não Sois Nada”, bigodudos, valentões, teimando aos gritos durante a parada:
Viva Pedro II!
—    Viva Deodoro!
—    Viva o Império!
—    Viva a República!
—    Cabra besta!
—    Cabra burro!
—    ..................»
E depois lá vinham os times de futebol “Centenário” e “Cajazeiras”, com jogos e vitórias barulhentas, tiros e murros, cachaça e pancadaria; na jogada entre americanos, que construíam o açude de Boqueirão, e brasileiros, o povo invadindo o campo e agredindo os gringos filhos da puta; mister Jorge, um dia, bêbedo, dando tiro no meio da rua, matou um sertanejo, e daí, um irmão deste, vingando-se, matou o galego, lá está no cemitério o túmulo, engradado de ferro e escrito em relevo — “MAURICE J. HANIFIN DIED MARCH 2d 1923”; depois lá vinham as brigas entre os jornais “SPORT”, de Antônio de Sousa, e o “REBATE”, de Marcolino Diniz, forasteiro de Princesa, fumando charuto, de bengala, casimira, colete e polainas, e bebendo conhaque e desafiando os filhos da terra; Dr. Pitanga, eleito o “rapaz mais feio do mundo”, dizendo que deixava para seu eleitorado “aquilo que sobrava de Anisão”, em artigo de jornal; depois vinham as histórias de Dono de Casa, dom Manoel, Sabino Gavião, Gonçalo Pescoço, do velho Coêlho, Sabino Corró, mestre Enéas, dos irmãos Santos, João, Moisés e Arão Bezerra, Cassimiro e Mané Tem-Tem “que ontem tinha e hoje não tem...”
A cidade não podia dormir. Não podia. Choveu muito e o povo acordado, principalmente, os velhos. Velhos madrugadores e insones, recordando o passado e contando a história da cidade. E lá vinha o pernambucano, de Pesqueira, Luís Gomes de Albuquerque, procurando ouro nas minas de Piancó; nada encontrou de ouro, mas achou, sim, uma índia tapuia, bonita, peixão, e desabou com ela para os sertões do rio do Peixe, e aqui, requereu uma data de sesmaria, povoando este mundão perdido; do velho Luís com a cabocla Ana Maria de Espírito, nasceu gente prá burro e a coisa se complicou; e lá chegou Vital de Sousa Rolim, que vinha das bandas do Rio Jaguaribe do Ceará, da família dos Sousa Dias e Coelho da Cunha; e aquele “Rolim” era do avô paterno, francês, de Penêdo, de Alagôas, médico, acusado de crime de morte, trocou Mons Rolim por “Sousa Dias”, para evitar perseguição; Vital casou com uma filha do velho Luís Gomes, com o nome de Ana Albuquerque, que depois o povo ficou chamando de Mãe Aninha, porque era “o maior homem” do lugar, fazendo casas, capelas, povoado, filhos, e daí o padre-mestre Inácio Rolim, que inventou um colégio, escreveu livros e desasnou (sic) muito cabra bruto dos sertões brabos; depois, chegou um português, filha da mãe, de nome Joaquim Antônio do Couto Cartaxo, casando com Ana Gomes de Albuquerque, filha de uma irmã de Luís, de nome Joana; depois dessa confusão, casou de novo com outra Ana, priminha da outra Ana, mulher de Vital, e aí a confusão foi maior...; depois vieram os irmãos Bezerra, sobrinhos de Vital, de Inhamuns, do Ceará, que casaram com as primas e haja mais confusão; depois os Cartaxos se misturam com os Dantas do rio do Peixe, que vieram do rio Piancó, do Caicó, do Cariri, do inferno da pedra, e aí, haja mais confusão... E, aí, os velhos ficavam, horas e mais horas, perdidas, discutindo parentesco, confusão, terras, bois, prestígio, sangue, raça, riqueza, valentia...; depois a luta da vila para ser cidade, libertando-se de Sousa; eleições entre conservadores e liberais dentro da igreja, com desaforo, facadas e tiros; João Cartaxo, tomando chumbo debaixo da asa, porque, montado, gritava à porta da capela— “Viva Nossa Senhora! Viva o Partido Liberal!”; depois a velha Naninha mandou vingar duramente a morte do filho, e os cabras trazendo sacos de orelhas, como prova do serviço bem feito...; depois de cidade, a luta foi para arranjar um bispo, um açude público, um trem, um cinema, luz elétrica... O diabo!
—    A cidade não podia dormir. Choveu muito. O povo acordado, alegre, mangava dos anos secos. Dos anos ruins. Do tempo em que os homens ficavam prevenidos, desconfiados, conversando pouco e assombrados; vendo o sol queimando tudo feito um louco incendiário a tocar fogo no mundo; e transformava em cinza o céu, a terra e os pensamentos dos homens — um cinzeiro parecia subir e descer, redemoinhando ideias e coisas, homens e bichos; compadres, comadres, parentes e conhecidos recorriam uns aos outros, encabulados, cabisbaixos, inibidos e presos pela canga de um ano seco, torrado; todos, de olho pregado no nascente, inquiriam o céu lavado de azul, mandando mensagens, preces, recados, lamentações, pragas, desesperos, dores e blasfêmias para deuses, santos e governos; e tudo isso ia subindo, subindo, subindo; subindo também o preço da vida, do sustento, das mercadorias, das coisas; tudo subia, subia até a ruindade dos homens e bichos; somente a vida se degradava, emporcalhando tudo; uma sujeira; e o sol, feito um doido, derretia o chão, destruindo, comendo tudo; tempo ruim, tempo seco, fazendo mi sérias, entortando a vida do povo, mudando o destino dos homens e dos bichos; e o povo pobre de bens e de espírito ficava vagando, prá cima e prá baixo, idiotamente, contando casos, e de sacos às costas, vazios e cabeça oca, sem plano e sem ideia salvadora; um zé-povão, bestamente, esperando trabalho, paciente, pois o Governo estudava e prometia; e um zé-povinho, burramente, aguentando fome, desambulante, feito um diabo sem eira nem beira; e o ar da miséria ia to¬mando conta de tudo; principiava a indigência, a molambeira, mau cheiro e catinga, e daí o desejo de partir, fugir, ganhar o caminho do inferno, de um mundo novo, diferente, onde pudesse matar a fome, escapar e sobreviver; era a retirada, a fuga, o êxodo, chupando, amorcegado, o nordeste sofredor que nem sovaco de aleijado em muleta; mas o sol brilhava, parecendo pedra falsa que engana a terra e povo, homens e bichos.
A cidade não dormia. Não podia. Choveu muito nas cabeceiras do rio do Peixe, nas cabeceiras do rio Piranhas, do riacho do Boi Morto, do açude Grande. Choveu muito nas roças do povo. Nos roçados dos homens e bichos. Choveu na roça de todos.
A cidade não dormia. Choveu muito. E Firmino Justiça ouviu sem escutar:
—    Pois foi assim. Eu disse assim ao padre no trem: “olhe, seu reverendo, nesta seca, não escapa ninguém. Ninguém mesmo. Só se for mesmo padre ou jumento. Logo, escapa eu e o senhor. O senhor como padre e eu como jumento ...” E aí o padre achou bom mesmo o troço. Isso foi na seca de quinze... não foi não, foi na de dezenove, quando eu trabalhava na cidade de Senador Pompeu do Ceará. Foi mesmo assim. O diabo do padre gozou com o negócio... — contava Sousa Potassa, emborcando mais um copo de cana e enxugando os beiços na manga da camisa. E já queria repe¬tir a história, quando Firmino Justiça apagou a vela, botou o bêbedo prá fora e fugiu em procura de casa, entropicando (sic) na buraqueira das ruas enlamaçadas.

* * *
—    Uma hora da madrugada. A lua bailava num céu esburacado de estreias, clareando leitosamente a cidade. Da casa de Antônio Jacaré, na Rua da Feira Velha, foi saindo um grupo de gente, ruidoso e acanalhado. Na frente, ia ele, fantasiado de monstruoso cururu, de couro verde-sujo e olhos aboticados, enormes, dando pulos moleirões e berrava alto e grosseiramente:
—    Teitei-teitei-teitei...
—    Bééé... corééé... foi-foi-foi... blúm-blúm... boi- boi-boi... — respondiam os acompanhadores. Mais atrás, um conjunto musical, atacou um zigbúm-zigbúm-búmbúm- búm... E aí, Zé Lira tocava flauta e Helidoro, trombone; mestre Abílio, zabumbeiro, e Higino Apolinário, clarineta; Zezé Caronista, nos pratos, e o preto, de boné, tamborim, só poderia ser mesmo Zé dos Anjos, o telegrafista; Zé Caraolho, no pandeiro, e Severino Riachão, bombardino; Zé de Sousa, no baixo, e Januário Doido, numa lata velha de querosene — tingalatinga-tingalatinga... Ao redor, uma maromba de gente, seminua, descalça, encachaçada e divertida, sapatea- va, dançando e batendo palmas ao ritmo do zig-búmbúmbúm. O mestre Gonçalo puxou o cateretê, empunhando um ganzá:

   —    E como é, e como é o nome dele?
—    Cururu-cururu teitei!
E o inverno já pegou em Cajazeiras! Cururu-cururu teitei!
—    E foi boa coisa que Deus mandou! Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muita fartura! Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muito boi gordo! Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muito pirão! Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver milho verde? Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muita canjica? Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muita coalhada? Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muito algodão? Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muito dinheiro? Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muito casamento? Cururu-cururu teitei!
—    

E vai haver muita festa? Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muito samba? Cururu-cururu teitei!
—    E vai haver muito cacete? Cururu-cururu teitei!
—    E o delegado vai apanhar? Cururu-cururu teitei!
—    E a polícia vai correr? Cururu-cururu teitei!
—    E viva o coronel Sabino! Cururu-cururu teitei!
—    E viva o bispo dom Moisés! Cururu-cururu teitei!
—    E viva o doutor Jurema!
—    Cururu-cururu teitei!
—    E viva o padre Cícero do Juazeiro!
—    Cururu-cururu teitei!
—    E viva o povo de Cajazeiras!
—    Cururu-cururu teitei!
—    E viva o inverno de 1924!
—    Cururu-cururu teitei!
—    E como é, e como é o nome dele?
—    Cururu-cururu teitei!
—    E os sapos estão gozando?
—    Blúm-blúm-blúm... bééé-bééé... teitei... coré-coré ... buúm-buúm... boi-boii-boii... foi-foi-não foi-foi...
       
Rua Grande, atual Rua Padre Rolim
      
E na rua da Igreja, o padre Anselmo despertou e foi abrindo o baú velho das recordações, para ir chorando os anos corridos e esgotados, sob o batuque repentista que festejava a primeira chuva caída. Riscou um fósforo, tateado, acendendo o candeeiro; picou fumo e encheu o cachimbo, sentado na rede; fumava, mirando a viola, metida num saco e dependurada no armador. Ela pingava saudade do tempo vivido.


Agora os baticuns sacudiam a rua Grande — rua larga, onde morava as famílias coloniais dos povoadores da ribeira —    Albuquerques, Rolins e Cartaxos. Dos coronéis, majores, capitães, tenentes e alferes, patenteados pela Guarda Nacio¬nal, como proprietários dos latifúndios, herdados dos bisavós, que vinham das sesmarias. Eram os donos da vida.
Garrafas de cana passavam, de mão em mão, para um trago, afinando gargantas e vibrando os corações. A pinga catucava o sangue, acordando os ancestrais. Atiçava o triân¬gulo racial — o branco, o índio e o negro. E a alma do povo se derramava alegremente. No oitão da casa do prefeito, Gonçalo falou alto:
—    Coronel Sabino!?
—    Sou eu mesmo, seu compadre. Fazendo um cururu, hein? Tudo em ordem? Que invernada! Santa Luzia deu bom sinal.
—    Pois é. Estamos festejando o pé d’água. Invernão!
—    Vai ser de matar sapo. Meu pai dizia que mil e novecentos e vinte e quatro, ia ser o maior inverno do sertão. Se Deus quiser — e ficou reconhecendo os parentes e amigos que ali estavam, arregaçados e chapinhando os pés nas águas empoçadas. A frieza do ar fez o Coronel espirrar. A chuva recomeçou, chorando nos telhados. A mulher reclamou:
—    Vem prá dentro, Sabino. Olhe teu estalicídio (sic).
—    Bom-dia, amigos — e entrou, batendo a porta.
—    E como é, e como é o nome dele? — puxou Raimundo Caçote.
—    Cururu-cururu teitei!
—    E viva o coronel Sabino!
—    Cururu-cururu teitei!
                                                          ❖❖❖
—    Duas horas.
Madrugada escurecida. Ao redor de uma mesa atoalhada de chita carnaval, sentados em tamboretes, bebiam, tocavam e cantavam os batráquios. Mulheres dengosas, oferecidas, prontas para o amor, escutavam, rodando chaves de seus casebres, nos dedos. Das janelas, gandaieiros observavam o interior do cabaré de Maria Cabelão. Agarradinhos, Moisés e Dorinha entraram.
—    A-man-ce-ba-dos! — gritou Zezé.
—    Foi o remédio que o doutor passou... — disse Dorinha, risonha e peneirando-se toda. Sentaram-se.
—    De um canto de parede, o carbureto iluminava o salão. Copos de cerveja espumavam. O grupo musical dos batucadores animava o ambiente, tocando e dançando. Apolinário berrava no final de cada parte:
—    Viva a chuva! Viva Santa Luzia!
Sujo de lama, embriagado, chegou à porta, Sousa Potassa. Sondou a animação, reconhecendo os presentes:
—    Que é que há, gente boa?
—    Tudo bem, mestre Sousa — respondeu Gonçalo.
—    Mestre, uma porra! — e entrou, tombando. Cabelão ofereceu um tamborete. Recusou e ficou encostado à parede. A ronda de soldados enfiou a cabeça na porta e na janela, medindo a reunião. A polícia ficou olhando os peitos das mulheres. Sousa Potassa, aborrecido com a fiscalização, provocou:
—    Que querem?! Aqui só tem gente decente. Num já viram. Pois vão policiar no Cachimbo Eterno, lá é o rói-couro. Esses macacos... — e escarrou no chão. — Uns pimbas...
—    Você está insultando a gente. Tá preso, seu bêbado sem-vergonha! — gritou João Corneteiro, entrando de sopetão, acompanhado de três soldados, e agarrou Potassa.
—    Preso, uma ova! Você pode prender ninguém! — e procurou despregar seu braço da mão de João Corneteiro, num puxavante, rasgando a manga da camisa, enquanto os outros queriam arrastá-lo pela cintura de porta fora. O mulherio desapareceu, vendo o ruge-ruge. Potassa, vermelhão, bracejando, vociferava:
—    Me soltem, cachorros!
—    Você vai, seu cachaceiro! Cabra da peia!
—    Não vou! Só saio daqui aos pedaços! Putos!
—    João Corneteiro, não leve isso em conta. Potassa está bêbado. Dispense, foi a chuva — interferiu Gonçalo.
—    Vai! Vai! Não se meta em defender este cachaceiro. Ele esculhambou a polícia. Num tem grande que dê jeito. Leva! — repeliu o mulato, cheio de raiva e trincando os dentes.
—    Não vou, polícia de merda! Sacanas! Bandidos!
Potassa berrava, com a camisa em pedaços e aos pulos, estrebuchando nas mãos dos soldados. Gonçalo, Apolinário, Abílio e Zezé intervieram na luta, para tomar o preso. O bolo se formou, virando angu-de-caroço. Era o cu-de-boi. O c.d.b.    ,    I
Desatracado, João Corneteiro soqueou a cara de Potassa e puxou o facão para ferir os paisanos. Moisés, recantado no salão, sacou o revólver, engatilhando-o, e ordenou:
—    Solta o facão, negro safado!
João Corneteiro, ligeiro, avançou, despejando-lhe uma facãozada, e Moisés, saltando de lado, livrou-se, acionando o dedo do gatilho — pei-pei-pei. Com o peito varado de bala, João Corneteiro deu uma upa mortal, caindo ao chão. Sacudidos pelos estampidos, os soldados desengalfinharam-se dos contendores, atônitos, e vendo o companheiro espichado no salão, prostrado, banhado de sangue, arribaram, pela porta da frente. Gonçalo, espevitado, empurrou o cadáver com o pé:
—    Era uma vez um corneteiro...
O medo escondeu as mulheres nas sombras da madrugada. O defunto barrava a saída, atravessado, enguiçando a porta. A morte proibia passagem. Os homens, resolutos, agarraram Potassa e foram-se pela porta da cozinha. O carbureto assobiou, vaiando cabulosamente. O mau hálito do homicídio tomou conta da casa vazia.
Um cururu lodoso, cascudo, pachorrento, pulou sobre o batente e ali ficou grelando a luz estanhada do carbureto. Bichinhos voadores, adoidados, iludidos, iam caindo, aporrinhados. A vaca gorda, de açougue, urrava penosamente; e o marchante Raimundo Anastácio, ex-cangaceiro, canhota de gengibre, auscultava a hora de matá-la. De soltar o olho do machado no pé do chifre e enterrar a faca de ponta na veia grande do pescoço. A sangria espadanando, seringando, como se fosse sangue de gente — quente, borbulhante e encarnado. E lá vinha a imagem do negro Pilão, de frente, botando o punhal em cima dele, danado, aos gritos:
“— Quero beber sangue! Chegou teu dia!”
Ele se defendia, recuando aos pulos, e o negro avançando, dizendo pilhérias; foi de sorte, quando Pilão escorregou e caiu, aí, ele se aproveitou, cravando-lhe a faca na veia da morte. Depois, saiu, todo pachola, chupando os dedos melados do sangue do negro, só para ficar falado na história dos valentões da cidade. E ficou mesmo — a mão lambida foi secando, ressecando-se, encriqueada, parecida com mão de defunto. Daí aquele apelido desgraçado que a canalha da rua lhe pespegou — “Mão de Finado”. Vivia agora a rezar pelas almas dos seus mortos. Virou carola, com medo das penas do Inferno. Era de casa à igreja; da igreja ao açougue; deste à igreja; desta à matança; desta à igreja; da igreja à casa do vigário. Não matava mais gente, mas matava gado. Os ofícios se pareciam. Na gíria de sicários, matador profissional é chamado “marchante”. Caqueou o cachimbo debaixo da rede, acendeu-o, e ficou tabaqueando o caso à luz da religião. Iria ou não para o Inferno?!
                                                     ❖❖❖
Enchendo a bacia, o açude Grande bebia aos borbotões a água do riacho Boi Morto que, de caixão cheio, rolava nas cachoeiras, roncando, conversando alto, feito um monstro do tempo em que os bichos falavam. O aguaceiro estava encostando à fita de pedra do sangradouro.
A chuvarada derreteu as seis pedras de sal da experiência de S. Luzia. Assegurava seis meses de inverno cutuba(sic), rasgado, de rabicho acochado, de pau enfincado, de rios desbordados, arrombando açudes, cobrindo baixios, várzeas, roças, matando lavoura, matando gente, matando sapo, virando bicho. Era a terra do oito ou oitenta.
Inquieta, de espírito telúrico assanhado, a cidade já se esperneava, querendo reparar lá fora o mundo novo que o chuveiro rebentou e sacudiu em cima do chão, a provar mais um milagre da Criação. Espicaçados pelo frio gostoso da madrugada alcoviteira, homens e bichos vivificavam os sexos, potentes e protuberantes, numa tentativa de recobrar forças para uma nova lua de mel no tempo perdido.
A terra virou mulher no cio. Estava nua, ensaboada, banhada, cheirosa, orvalhada, de cabelos soltos, seios arretaidos(sic), sexo túmido, rebolando os quadris, fornicável (sic), cheirosa, pronta, para os amores da bicharada. E aquele mundão leio, ressequido, semimorto, achava-se agora ensopado d’água, hormonizado(sic) pegajoso, de ventre espermatizado(sic), remexendo-se todo, numa vibração de parto multiforme, pansexual, animado pelos quiquiriquis dos galos madrugadores. Era o apaideguamento dos homens e dos bichos.
A Natureza, fogosa e sapeca, cacarejava como uma galinha pedrês depois de pôr o ovo, prenhe de alegria carnal em facúndia.
O corneteiro, defunto, de olhos extasiados, fitava um pedaço de céu pela porta escancarada; parecia também sorrir, alegrado, querendo levantar-se; querendo sua corneta de ouro; querendo tocar a alvorada. Só faltava a palavra mágica de um Jesus:
“— Levanta-te, corneteiro!”
Bufando podre, o carbureto se apagou.
De papo cheio de insetos, regalado, o cururu pulou o batente de porta afora, e, no terreiro, saiu perseguindo uma fêmea no vício, para tibungar num açudeco de brincadeira de menino. E nas grotas, barreiros e fundos de muro da cidade, a saparia coaxava, divertida, teimosa, rediviva, musi¬cando um lindo desafio nordestino de tempo chuvoso: Blúm-blúm-blúm... bééé-bééé-bééé... teiteitei... Coré-coré-coré... boii-boii-boii... foifoifoi...
E foi um grande inverno. Um grande inverno. De matar sapos.