sábado, 5 de abril de 2014

Cajazeiras, Terra de cabra macho




Texto

Terra de cabra macho

A maioria dos meus leitores sabe que sou paraibano. Nasci em Cajazeiras, no alto sertão, a quinze quilômetros do estado do Ceará, onde fui buscar a mais bela conterrânea de Iracema, para torná-la minha consorte.

Como se vê, viajei pouco para encontrar a sorte benfazeja.

O nome de minha cidade natal origina-se de árvore frutífera, de pequeno porte, abundante na região. Em 07 de fevereiro de 1767, passou a fazer parte de uma sesmaria, pequeno terreno abandonado, cedido pelos reis de Portugal para ser povoado. O governador da capitania, Jerônimo José de Melo, a presenteou a Luiz Gomes de Albuquerque, que a doou à sua filha Ana de Albuquerque, após seu casamento com o jovem Vital de Souza Rolim. Emancipada em 10 de julho de 1876, completará, em breve, 135 anos de autonomia administrativa.

Em 22 de agosto de 1800, nasceu um dos filhos de Ana de Albuquerque, registrado com o nome de Inácio de Souza Rolim, ordenado padre em Olinda, estado de Pernambuco. Em 1843, o padre Rolim, como viera a ser conhecido posteriormente, retornou à terrinha e fundou o Colégio Salesiano, que recebeu o seu nome. Ali estudaram o Padre Cícero Romão Batista, “meu padim pade ciço” e o primeiro arcebispo do estado da Paraíba, Dom Arcoverde. E eu, este modesto escrevinhador.

Cajazeiras é uma cidade pequena. Apenas 58.437 habitantes disputam o PIB de 400 milhões de reais, cabendo-lhes, individualmente, cerca de R$ 7.000,00. O Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH, é de 0,68, considerado médio, para a região.

A terra do Padre Rolim é bastante movimentada culturalmente. Dispõe de campus universitário federal, de modesto museu, de duas estações de rádio e de um jornal. O teatro, porém, é a expressão maior de sua cultura de divertimento. Os circos de variadas origens e representatividade fincam estacas e estendem lonas impermeáveis em terrenos autorizados pela prefeitura. O cajazeirense é amante da arte cênica, já tendo exportado alguns atores, um deles, uma atriz, minha parenta, integra o elenco de novelas da Rede Globo. Eu, sem querer me exibir, já escrevi uma peça dramática que representei e dirigi.

Em certa ocasião, instalou-se no bairro Alto do Cabelão, um circo de boa reputação. A tenda tinha considerável circunferência. Os artistas distinguiam-se por suas performances espetaculares. Os palhaços faziam a seleta plateia rir, às gargalhas. A programação noturna sempre culminava com a representação de uma peça, algumas românticas, outras trágicas, que normalmente faziam chorar o espectador mais emotivo.

Por ocasião da Semana Santa, resolveram encenar a Paixão de Cristo.
O elenco compunha-se dos mesmos artistas que dividam trapézio e picadeiro, além de alguns moradores da cidade, especialmente convidados. Um rapaz de boa aparência fora indicado para fazer o papel de Jesus. O sujeito era “boa pinta”, usava barba bem cuidada e tinha os cabelos longos e cacheados. Mais ou menos umas trinta pessoas representariam o Cristo, Maria mãe de Jesus, Maria Madalena, Pôncio Pilatos, discípulos do Mestre, alguns fariseus e três ou quatros soldados romanos.

Durante os ensaios, a esposa do dono do circo apaixonou-se por “Jesus”, o intérprete. E ele, que não dava moleza, aproveitou a deixa. Às vésperas da encenação da peça, o proprietário do circo soube do repentino romance. Ficou furioso, mas controlou-se. Aguardaria melhor oportunidade. Um escândalo naquelas alturas prejudicaria o investimento. Depois de pensar bastante, encontrou a solução: iria participar da peça, fazendo o papel de um soldado romano.

No dia do espetáculo, a cidade inteira lotou as dependências do circo. A representação do sofrimento de Jesus tornava a plateia chorosa. As mulheres e alguns homens derramavam seus prantos silentemente. Jesus, o ator, sofria no corpo as fortíssimas chibatas desferidas pelo soldado romano que empunhava o chicote com a destreza que a vingança lhe proporcionava.

“Jesus” reclamou em voz baixa:

– Oxente, cabra, tá machucando!

Para dar mais veracidade à cena, o soldado batia sem dó nem piedade. O lombo do infeliz ator já sangrava, quando, sem mais aguentar, sacou de uma peixeira de doze polegadas e partiu para o seu algoz, dizendo:

– Vou te ensinar como se defende na Paraíba!

O dono do circo corria desesperadamente, protegendo-se atrás de um e de outro ator, que a tudo assistiam sem nada entender. A plateia, antes chorosa e compadecida, presenciando o sofrimento de Jesus, o intérprete, gritava delirantemente:

– É isso aí, Jesus, fura ele!

Outros diziam:

– Aqui é a Paraíba, “bichim”. Não é Jerusalém, não!

E o espetáculo terminou antes da crucificação.
Lamércio Maciel
Publicado no Recanto das Letras em 26/05/2011
Código do texto: T2994009



Lamércio Maciel
Brasília/DF - Brasil, 70 anos

Quem sou eu

Nasci no estado da Paraíba, em 1941. Fui cronista de uma emissora de rádio em minha cidade natal, Cajazeiras, na década de setenta, época em que me aventurei no teatro amador. Na oportunidade, escrevi uma peça que representei e dirigi. Por temer represálias do regime militar, abandonei a lide literária depois de ter meus escritos questionados pela ditadura dos generais. A partir de 2002, já aposentado, fiz as pazes com o “verbo” e voltei a escrever. Como bacharel em ciências contábeis, exerci as atividades de contador e auditor, tendo publicado duas obras: Contabilidade, Aspectos Jurídicos e Fiscais do Balanço e Auditoria Fiscal-Tributária. Ambas serviram de livros-texto em cursos e palestras que ministrei. Sou autor de quarenta contos, sessenta e três crônicas, três pequenos romances e três outras narrativas. Meus principais escritos receberam os seguintes títulos: Torre da Concórdia, Álbum de Recordações, Visitando o Passado, O ultimato, O único e Epopéia da Família Braga –– Um Giro pela Europa. Os contos foram reunidos em um volume, intitulado: Por que conto? Conto, porque conto; Conto por conto, Ora!. O volume contendo as crônicas foi denominado Aurora Literária.




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