domingo, 8 de julho de 2012

SAORA E A TRAJETÓRIA DA PANIFICAÇÃO EM CAJAZEIRAS


 A cidade de Cajazeiras localiza-se no extremo Oeste do Estado da Paraíba e distancia-se de sua capital por cerca de 450 km, com uma população estimada em 51.081 habitantes, residindo em 11.928 domicílios e com uma renda média do chefe de família de Cr$ 48.564,63. (IBGE,1991).
No tocante às origens históricas da cidade há pelo menos duas abordagens que tentam explicar sua gênese e desenvolvimento. A oficial - privilegia o aspecto cultural-educacional do qual a fundação de Cajazeiras se revestiu. Sua origem estaria vinculada a instalação, em 1843, de um colégio por iniciativa do Padre Inácio de Souza Rolim. Tal instituição constituiu-se como a pioneira no Sertão paraibano.
De fato, o Colégio Padre Rolim - em função da atribuída competência do seu fundador - em curto tempo de atividade conseguiu atrair, para além da clientela existente na localidade, outros alunos de estados fronteiriços, assim como de outros Estados mais distantes.
De acordo com informações do professor Deusdedith Leitão, não foram pequenos os deslocamentos de estudantes dos Estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Piauí e Maranhão com destino a Região de Cajazeiras.
    No plano simbólico esta origem da cidade representou uma vitória uma vez que o Colégio do Padre Rolim projetou a futura cidade como tradicional educadora. Daí, Cajazeiras ser reconhecida como "a cidade que ensinou a Paraíba a ler ". 
"O Colégio do Padre Rolim, ao lado da pecuária já bastante desenvolvida e do plantio do algodão colocaram o povoado em destaque na Região" (Livro do Município de Cajazeiras - L.M.C - p.38).
" passa em menos de trinta anos de simples povoação, ou antes de fazenda, à categoria de cidade, sendo então a mais comercial e populosa do Sertão" (Galvão et alii, 1987:3).
   
Em Cajazeiras, graças às suas condições naturais, o algodão expande-se vertiginosamente, o que propo-cionou ao município um notável desenvolvimento. Até a década de 1950 Cajazeiras teve uma população urbana quase insignificante se comparada à população fixada na zona rural. Enquanto a cotonicultura funcionou como o principal agente fomentador da economia local, esta característica populacional continuou inalterada.

   A implantação da rede ferroviária em 1922 vem impulsionar o escoamento da produção do algodão, fazendo-o chegar com maior ra-pidez aos portos e daí para as indústrias têxteis, sobretudo as internacionais. Essa prioridade da via férrea no sentido do escoamento da produção do algodão é ilustrada pelo fato que, somente no ano seguinte - 1923 - inaugura-se o transporte ferroviário de passageiros. Da mesma forma a política de obras contra as secas levadas a efeito pelo então Presidente da República, Epitácio Pessoa, que incluía o melhoramento e abertura de novas estradas em toda a região através do IFOCS (Instituto Federal de Obras Contra as Sêcas). Nesse sentido foi contratada a empreiteira norte-americana Dwight P. Robinson. Esse fato contribuiu duplamente para o desenvolvimento da cidade naquele momento. Em primeiro lugar, as estradas construídas e/ou melhoradas agilizaram o transporte de algodão das zonas rurais produtoras e cidades circunvizinhas para o embarque ou o melhoramento mais rápido em Cajazeiras. Por outro lado, as atividades comerciais se desenvolveram, quer pela safra do algodão, quer em função do dinheiro da Inspetoria e dos americanos
"Era tudo novidade para os matutos e para os citadinos da modorrenta Cajazeiras, aquele vai-e- vem de autos e caminhões dos gringos. Suas esposas e amantes a fazerem feira e a comprar tudo o que visse e gostasse, nas lojas e mercados em Cajazeiras. Não tinham pena de dinheiro; os seus dólares eram fartos que, trocados em Fortaleza por Mil Réis, davam para tudo e, principalmente, para bebidas. Os negócios comerciais cresciam tanto pelo regular inverno e a favorável safra de algodão, como por conta do dinheiro da Inspetoria e dos americanos" ( Costa, 1986:43).
Com igual expectativa de desenvolvimento econômico a implantação da energia elétrica na cidade, com a inauguração da Usina Geradora de Força e Energia Elétrica, favoreceu as usinas de beneficiamento de algodão aí instaladas, propiciando grandes melhoramentos urbanos.
   A configuração arquitetônica que caracterizava a cidade, a constituição das suas casas e a sua disposição com relação ao meio urbano permite inferir sobre a relação mais ampla da sua população, inclusive a própria relação familiar.
No que concerne aos casarões assobradados encontramos aí construções sóbrias, de alvenaria, cuja abundância e qualidade do material de construção eram a sua característica central. Encontramos aqui casas com um ou dois andares, construídas a partir de pedras, tijolos, cal e cimento, cujas fachadas caracterizavam-se pelo recorrente ornato com arabescos... Casebres de taipas, rústicas construções feitas a partir de ripas trançadas e alcadas com barro, cobertas por um complexo entrelaçamento feito a partir de folhas de coqueiro ou de carnaúba. A própria precariedade dessas casas aponta para a publicização da privacidade dos seus moradores, para a qual elas vão contribuir. São casas pequenas, cujas subdivisões não comportavam mais que três cômodos, quando muito. São, portanto, casas modestas e que apenas podem proporcionar aos seus moradores a função de um precário e desconfortável dormitório, onde as relações da vida coletiva aí não se completam. 
    De qualquer forma, a cidade passava naquele momento por um clima de prosperidade econômica, reflexo da complementaridade havida, onde o campo fornecia o alimento e o algodão para ser beneficiado e comercializado na cidade e esta, por sua vez, abastecia o campo através do comércio, levando a estes os produtos que ele não podia produzir. Dentre estes produtos não produzidos no campo encontra-se o pão de trigo, que penetrou com relativa facilidade do cotidiano alimentar das populações rurais polarizadas por Cajazeiras. É necessário, todavia, destacar a ausência da tradição do pão de trigo no âmbito da culinária sertaneja. É rica a descrição feita por Freyre dos hábitos e práticas culinárias que remontam ao período colonial, onde destaca-se a larga utilização da mandioca, do milho, da batata doce, das frutas, animais e peixes típicos do Nordeste na preparação desses alimentos. Nesse contexto a farinha de mandioca assumiu, ainda entre os colonizadores, um lugar de destaque na medida em que substituiu o pão de trigo europeu. 
As primeiras padarias instaladas na cidade de Cajazeiras datam da segunda década do nosso século: uma do ano de 1911 e outras duas do ano de 1919. 
 Naturalmente durante os dias de feiras, os "matutos" se esbaldavam no pão doce com refresco, que levavam o pão quentinho para casa. as padarias tinham a sua produção aumentada, uma vez que o fluxo de pessoas à cidade significava também o consumo do pão na própria padaria. Com o pão se fazia caridade, davam-no como esmolas para os mendigos.
No que concerne à panificação os anos 40 foram por demais significativos porque até aí a produção panificadora foi extremamente restrita no que tange a diversificação. Vejamos o que nos informam dois dos mais antigos padeiros da cidade.
"As padarias daqui só sabiam fazer um tipo de pão aguado, fino e duro que só cacete, não tinha cristão de Deus que aguentasse comer. Já o pão doce era que nem chiclete, tinha uma liga medonha, e faziam também umas bolachas redonda que também não eram boas ("seu" Saora).
"Em julho de 1947 eu estava certo de ir trabalhar em Conceição do Piancó e passando aqui em Cajazeiras fui chamado para trabalhar aqui. É que o pão lá em Zeca da Padaria tava saindo ruim e Zeca falou para eu ficar trabalhando com ele prometeu um ordenado melhor do que o de lá, aí eu fiquei com Zeca. ("seu" Esmero).
Realmente, a partir de 1947 com a chegada de alguns padeiros vindos da cidade de Patos a panificação em Cajazeiras começou a tomar novo vulto e passou a haver uma maior diversificação neste setor: o "seu" Saora, ainda empregado, lançou no mercado Cajazeirense o "pão recife"; o "pão doce de coco", a "brôa prêta"; "seu" Esmero lançou as bolachas "espinharas", "peteca", "canela" e a bolacha de goma. 
Os padeiros que lhes antecederam eram, na ótica do "seu" Esmero e do "seu" Saora, inferiores e essa inferioridade era expressa no "pão ruim", no "pão duro que só cacete". .  
Todavia, o "seu" Saora não ficou pouco tempo trabalhando como empregado, conseguiu abrir o seu próprio negócio, a sua gangorra, uma vez que sendo ele um padeiro por demais respeitado na cidade diante do reconhecimento obtido pelos seus produtos, optou pelo trabalho autônomo. Já o "seu" Esmero continuou na condição de empregado ainda que um empregado muito considerado em função da sua reconhecida competência e saber no ramo da panificação. 
Não foi apenas o lombo dos burros que fazia a locomoção para fazer os produtos panificados chegarem até a zona rural. O " seu" Saora nos informa que durante os anos 1950 ele produzia pães, biscoitos e bolachas na sua gangorra e os transportava, pessoalmente, à pé, até as mercearias nas zonas rurais mais próximas.
Sendo ele dotado de muita força e equilíbrios físicos, conseguia transportar um balaio grande cheio de pães e sacos de biscoitos à cabeça e mais quatro sacos (dos utilizados para o acondicionamento da farinha de trigo), também contendo pães, bolachas e biscoitos - dois sacos amarrados a cada ombro.
É claro que as distâncias percorridas eram relativamente curtas, nunca ultrapassando a média dos seis quilômetros. 
Ser padeiro é uma função exclusivamente masculina diante do esforço físico despendido, da necessidade da força bruta para a execução de determinadas tarefas, de rapidez e habilidades práticas em outras. A mulher não teve oportunidades nesta seara e ainda mais porque "mulher na padaria dá problema no amor". 
"Lá na padaria somente trabalhava homem. Como é que pode? Como é que pode mulher trabalhar em padaria? Não dá certo. Ela não tem força e o serviço é muito pesado, trabalhar a noite toda, o dia todo. Não pode. Não é ramo prá mulher" ( "seu" Esmero).
Mas foi graças a sua família nuclear que o "seu" Saora conseguiu montar em 1947 e manter até 1983 a sua gangorra. Portanto, foi com e na mão de obra familiar que ele progrediu. 
"Eu pelo menos trabalhei com a família. Trabalhei com a minha família porque era difícil botar uma pessoa, porque poucas vezes eu botei uma pessoa prá me ajudar, foi poucas vezes que eu botei, mas sempre só trabalhava em casa com a família mesmo".
A sua esposa, d. Toinha, além das tarefas domésticas e das tarefas próprias da gangorra, na fabricação de pães e bolachas, ainda fazia bolinhos em formas de "latas de sardinhas" que eram vendidos com refrescos - que ela também preparava - na sala de sua casa. Era uma espécie de casa-quitanda, onde ela também assava bolos dos vizinhos e preparava carnes e salgados para festas, sob encomendas. A distribuição dos pães pelas ruas centrais da cidade era feito por "seu" Saora e seus filhos.  Tanto é assim que das várias gangorras relembradas pelos nossos informantes apenas a do "seu" Saora conseguiu manter-se, onde os seus filhos assumiram o controle do negócio após a sua aposentadoria.
A criatividade do padeiro foi outro fator relevante na vida das gangorras. Ficaram famosos, por exemplo, em Cajazeiras, o "jacaré de coco" e a "bolinha de ouro" produzidos pelo "seu" Saora: ambos eram pão docer. A "bola de ouro" recebia uma cobertura de garapa de açúcar depois de assada; o "jacaré de coco" recebia, antes de ir ao forno, uma cobertura feita de coco e açúcar e, depois de assado, recebia também uma camada de garapa de açúcar. Esse pãzo tinha realmente a forma de um jacaré.
Esses pães eram vendidos principalmente nas regiões mais centrais da cidade para o que o "seu" Saora desenvolveu uma técnica particular que o caracterizou. Com o balaio carregado de pães a cabeça ele saía pela cidade gritando jargões.
"Chegou, chegou. Olha o pãozão de arrouba, está se acabando. Quem é que não tem prazer num pão desses?"
"É o jacaré de coco. Olha a bola de ouro: preparada com queijo, coco e doce de goiaba. É ouro até na cor, gente".
Foi somente a partir deste cotidiano de trabalho familiar intenso e penoso que esta gangorra conseguiu sobreviver. Todavia, todo esse sacrifício representou a independência do padeiro com relação ao assalariamento, ainda que isso significasse uma forte exploração efetiva do trabalho familiar.
Como pressuposto às bases materiais da possível autonomia, para além da mão de obra familiar é necessário que se considere também a propriedade dos meios de produção, de forma que tal processo viesse a atender diretamente aos interesses dos produtores. 



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