quarta-feira, 3 de abril de 2013

Minhas memórias de Carpina - Padre José Rolim Rodrigues

Minhas memórias de Carpina
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Os Mestres:
I – PADRE JOSÉ ROLIM RODRIGUES


“Valha-me Deus, é preciso explicar tudo”.
(Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas).
“It was the worst of times, it was the best of times”.
(Charles Dickens, A tale of two cities).
[Invertidas as duas frases em relação ao original].
       


C
OMO O POETA naquele conhecido verso do Padre Belchior Maia d’Athayde, o Padre Zé Rolim poderia dizer de si: “Eu não sou um, sou dois” – ou é isso o que dele poderiam dizer quantos com ele conviveram, na transição que vai do Recife a Carpina, entre os anos 50 e 60 do século que passou.
Eu serei dos únicos, talvez, a poder falar de três Zés Rolins.

DO PRIMEIRO, eu tomei conhecimento ainda em Cajazeiras, nos primeiros dias de janeiro de 1955.  O diretor do Oratório Festivo, Padre Manuel Alves dos Santos, convocava o menino que, já um ano antes, ele quisera enclausurar em Jaboatão, não fosse este mais que apenas um pirralho inquieto:
– O trabalho dos salesianos em Cajazeiras vai nos dar o seu primeiro padre.  Já pensou que festa bonita?  Uma família ouvindo a primeira missa de um padre seu!
Sem que o “meu Padim” explicasse mais, entendi a que motivações remetia a sua mensagem, e fui tratando de prelibar a felicidade que eu sonhava também fosse minha, em algum dia por vir.  Eu já sabia que daí a seis meses seria aspirante, e essa palavra bastava para distinguir-me com a entrada do paraíso.  Desde fins do ano anterior, quando meus pais viram chegar as suas bodas de prata de casados (embora celebrar bodas não tenha ficado para pobre), dois tios que tinham loja de tecidos haviam prometido à minha mãe: ela poderia pegar lá os panos para ir cortando o enxoval mínimo do filho, conforme a lista mandada ao Padre Manuel pela Colônia Agrícola São Sebastião.  Além disso, ainda em 1955, o bispo de Cajazeiras, Dom Luís Mousinho, abria o seminário diocesano, e a cidade toda cantava: “Ser sacerdote é estar revestido / de tal poder qual outro Jesus”... Eu andava, assim, encharcado de vontade de ser padre: sentia maior orgulho em ser o orgulho de meus pais, e passei a ser mimado com desvelos de que nunca fora merecedor.  Cheguei em casa e acelerei a costumeira “reportagem” à família:
– Padre Manuel disse que é pra todo mundo ir lá, domingo.  A missa vai ser celebrada por um padre novo.
– Quem é esse padre?                                                                                
– É daqui de Cajazeiras.  O nome dele é José Rolim Rodrigues.
E lá fomos nós, meu pai, minha mãe, minha irmã mais velha, meu irmão mais novo e eu, ao Alto da Cabelão, assistir à missa do padre cajazeirense.  Foi a primeira vez que as palavras “música gregoriana” se juntaram em meus ouvidos.  Eu já ouvira esse tipo de música antes, quando o Padre Manuel nos ensinara a cantar, em latim, a Novena de Natal, letra e melodia de indelével reminiscência em minh’alma.  Mas ali estava mais: palavras que não entendíamos, envolvidas em sons que nunca ouvíramos, aumentando o misticismo da celebração religiosa.  E meus olhos ainda hoje procuram, no largo presbitério do santuário salesiano, ao lado direito do altar, aquele grupo de batina e sobrepeliz, ao redor de uma serafina (era esse nome antigo que meu pai conhecia), de onde saem as notas do que depois vim a conhecer pelo título de Missa de Angelis, cantada pelos padres Natal Griglio, José Grismondi, Osvaldo Honório de Freitas (no harmônio), Manuel Alves dos Santos, aos quais se acompanham o coadjutor Robério Ramos e outros padres, que, depois, eu soube vindos do Recife: Ângelo Visentin e Carlos Pederzini.
Em casa, eu mostrei à minha mãe o “santinho” da primeira missa do Padre José Rolim, dado pelo Padre Manuel, e que eu guardei por anos, junto com outra estampa, de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, lembrança de Frei Bruno, chefe das Santas Missões pregadas em Cajazeiras em 1951, e que não quisera me levar para o Recife porque eu tinha apenas sete anos de idade. 

EM SEU RETRAIMENTO de mulher sertaneja, minha mãe não revelou, de logo, que o jovem celebrante daquela missa era parente seu.  Afirmo por certo que ela nada falou sobre isso naqueles tempos, porque retenho dia, hora, lugar e circunstâncias em que lhe ouvi a confidência: foi em Carpina, na primeira e única vez em que meus pais (e mais duas irmãs e uma tia) me foram ver no Seminário, na festa de nossa vestidura clerical, 19 de março de 1961, pouco antes de entrarmos no refeitório dos superiores, para o almoço e para os discursos cerimoniais.  Ali, e só ali, fiquei sabendo que o Padre José Rolim e minha mãe situam-se a igual distância do mesmo tronco familiar: ambos são sobrinhos-tataranetos ou quintos sobrinhos-netos do Padre Inácio de Sousa Rolim, o Educador dos Sertões, fundador da “cidade que ensinou a Paraíba a ler”.  Eu me espantei e até gozei com a informação, mas era tarde para fazê-la atuar em meu proveito.  Minha convivência com o Padre Zé Rolim abrangia a terça parte, quase, de minha existência até então.  Quem sabe fosse justo esperar que nosso parentesco me tivesse ajudado a penar menos às mãos de um dos mais duros disciplinadores de quantos imagino haver existido, jamais, em um internato salesiano.
Foi esse o segundo Zé Rolim que eu conheci.

ATRAVESSEI OS PORTÕES do Colégio Salesiano do Sagrado Coração, no Recife, entre oito e nove horas da noite da quarta-feira, 25 de julho de 1955.  Acompanhava-me, na longa viagem poeirenta pelo ônibus Expresso de Luxo, o Padre Osvaldo Honório de Freitas, que um dia, menino como eu, o Padre Manuel Alves tomara pela mão e levara do Oratório de Jaboatão para o Aspirantado do Recife. 
O mundo que se abria à minha frente – conforme se desenhava à minha esperançosa inocência – não me permitia a mais mínima saudade do mundo que ficava para trás.  Eu era um menino bom, em concordância com a bondade das coisas, e um contentamento celestial soprava sobre os meus ombros.  A auréola de santo sobre a minha cabeça era uma boina azul-marinho, à italiana, que, dois dias antes, um tio me dera como despedida, e que me seria proibido usar dois dias depois, para que eu não me diferenciasse dos outros seminaristas.
Em Cajazeiras, o Padre Manuel me ensinara:
– No Recife, os padres não vão abraçar você como eu faço aqui com os nossos oratorianos.  Os padres não vão nem lhe passar a mão na cabeça.   Mas não esqueça de beijar a mão de qualquer que você encontre.  Dirija-se a ele, não espere ser chamado.  (Neste ponto e neste instante, relembro: “Brincadeira de mão é brincadeira de vilão”. A advertência, tantas vezes repetida depois, eu a ouvi, pela primeira vez, ainda no Oratório do Padre Manuel, de João de Deus Quirino, que já havia passado pela experiência do Recife ou de Jaboatão, não sei bem).
Só que não encontrei um único vulto de batina a quem pudesse dar mostras de haver aprendido a lição, quando ultrapassamos a praça de entrada do imenso colégio.  Por medida de prevenção profilática cujo alcance eu estava longe de compreender, segregaram-me na enfermaria do internato.  Camas brancas de ferro, vazias.  Como fantasmas.  Eu, sozinho.  Silêncio e escuridão.  O medo – antes do medo, o desamparo – me arrepiaram a pele e o espírito.  Estremeci em calafrios, mais do que à noite anterior, em Cajazeiras, quando os meus pais me deixaram (“até o dia da primeira missa” – era a regra) aos cuidados dos padres, no Colégio Salesiano, e eu me vi só, na ansiedade da noite imensa, de cara com o Destino.
 O Padre Osvaldo andou comigo ao longo do pórtico, dobrou à direita e, ao pé de uma escadaria que dava ao primeiro andar, me confiou a um velhinho calvo, óculos de aros metálicos, uniformizado de branco:
– Este é seu Pedro Ivo, o coadjutor-enfermeiro.
(E ali mesmo eu fiquei sabendo que seu Ivo era irmão de outro coadjutor, seu Severiano Ivo, que esteve em Cajazeiras e por lá terminou a vida religiosa, depois de envolver-se em grotesco sucesso: desdizendo dos métodos do Padre Manuel, ele surrara um oratoriano, com o próprio cinturão, na frente de um irmão deste e de alguns curiosos. Pior, no entanto, a parte que lhe coube no castigo: à falta do acessório, as calças lhe caíam, e ele era vaiado sem pena por quantos assistiam ao espetáculo. Depois, por acúmulo de insulto e injúria, o Diretor do Oratório o repreendeu, inflando as bochechas com fúria, e na frente dos que ficaram para ver o fim da festa. Aquele menino, Jaime Câmara, veio para o Maranhão, foi locutor de frente de loja, empregado de um irmão e de parentes meus, e terminou assassinado em Santa Inês, quando se meteu em política.  Nós recordamos muitas vezes o incidente, para destacar a bondade do Padre Manuel Alves).
– De manhãzinha cedo, você vai ouvir tocar o sino.  Pule da cama, vista a farda, e seja feliz – disse-me seu Ivo como boa-noite.
No dia seguinte, era o bom mulato Osvaldo Honório quem me apanhava para a apresentação oficial: 
– Vamos à missa.  Depois, você vai tomar café, e eu já o entrego aos seus superiores.  Mas veja como é alegre a vida de aspirante!  Como você começa bem!  Ontem à noite mesmo, eu soube que hoje é dia de Passeio Geral.  E para Jaboatão.  Você vai gostar muito de Jaboatão.
Metido numa farda de brim que vestia desde o início do ano no ginásio de Cajazeiras e que, na cor da calça e da camisa, destoava do cáqui de todos os outros aspirantes – assim também era o uniforme de Geová (Geová Magalhães Sobreira) – eu fui passado à atenção do Padre Prata (Luís Sávio Prata), o Catequista, que, em nosso caso, no Recife, fazia as vezes de Diretor Espiritual.  Este me acolheu com ar piedoso, e me chamou ao seu gabinete, quase porta a porta com a capela, ao fim da escada que levava para o andar superior:
– Você vem mesmo disposto a imitar Domingos Sávio?
Falando à meia voz, suas palavras se harmonizavam com o tom de recolhimento que envolvia o espaço à meia claridade.  Se eu tivesse chegado ali com outro propósito, não teria encontrado jeito nenhum de confessá-lo.  Mostrei-lhe o que tinha de devoto às mãos: uma Imitação de Cristo, autografada pelo Padre Manuel, de páginas marcadas com os dois santinhos que já mencionei:
– Ah, você assistiu à missa do Padre José Rolim?  Pois ele é o nosso Conselheiro.  Após das orações da manhã, vou apresentar você a ele.  E esse Frei Bruno... agora você vai ser de Dom Bosco, para sempre de Dom Bosco.  Olhe, este livro foi escrito por Dom Bosco, para você.  Ponha aqui o seu nome.
Obedeci-lhe, e rabisquei o autógrafo sobre a folha de guarda d’O jovem instruído. Mas, não sei por quê, guardo a impressão que o fervoroso Catequista não sabia ainda meu nome, pois nem uma vez perguntou como eu me chamava.  Liberado, atravessei o corredor, e fui colocado no último banco, mal podendo ver quem era o celebrante.
Ao fim da missa, o Padre Prata me fez seguir atrás de todos, até o refeitório.  Rezadas as orações antes da refeição matinal, eu me deparei com o Padre José Rolim em pessoa.  Ele me fez sentar ao meio de uma comprida mesa amarela (para oito pessoas) e me perguntou de onde eu vinha.
– De Cajazeiras.
– Ah, Cajazeiras...
Naquele preciso momento, eu ganhava outro nome, ou, antes, perdia meu próprio nome, que ficou reservado para os registros oficiais.  Para o meu conterrâneo, eu me encarnei para sempre na representação de “Cajazeiras”.  Não tardou, meus comensais me pespegaram o apelido de Picuri, tributo à protuberância atávica de meu crânio tapuia.
Veio em seguida o que me anunciara o Padre Osvaldo.  Os aspirantes fizeram fila para subir ao dormitório.  Eu tornei à enfermaria para apanhar objetos de uso pessoal.
Jaboatão confirmou a fama de ambiente largo, generoso, cheio de sol, de que eu fora informado desde o Oratório do Padre Manuel.  A faixa do horizonte alongando a onda verde dos canaviais, a basílica erigida sobre a pedra, a sacada do adro quase à altura das palmeiras imperiais, a gruta, a escadaria e a ladeira cercada de pitangueiras descendo para o noviciado (palavra pronunciada com recolhida reverência) à esquerda, o apiário à direita, à frente o galpão de um dormitório desativado, mais adiante o teatro abrindo para o campo de futebol, e, por trás do dormitório, a piscina de águas correntes: tudo transmitia a ideia de liberdade a céu aberto, de alegria franca, que eu tomava como a melhor expressão do espírito salesiano.
A piscina era um convite líquido e certo à espontaneidade.  Lá se concentrava a atração maior do nosso Passeio:
– “Cajazeiras” – chamou-me o Padre Rolim –, você trouxe calção de banho? 
– Trouxe, sim, senhor.
Desfiz o embrulho da toalha e lhe mostrei o calçãozinho azul-celeste, de brim ralo, no qual ainda me parecia enxergar os dedos de minha mãe costureira.  Eu estava contando os minutos para inaugurá-lo: seria a primeira vez em que eu tomaria banho vestido em alguma coisa.
– Não, “Cajazeiras”, este calção é curto demais pra você usar entre nós.  Vou ver se lhe arrumo outro. 
Eu não disse, até aqui, que, naquele 26 de julho de 1955, somava onze anos, quatro meses e 24 dias de vida.  Morto de vergonha, mal pude aceitar que a minha carreira de futuro sacerdote de Cristo começasse daquele modo torto. 
O Conselheiro desapareceu por alguns minutos.  Foi ao setor dos maiores.  Voltou:
– Está aqui, “Cajazeiras”.  Entre ali naquela “casinha” e vista este calção.
Desde ali, passei a tomar banho embrulhado em um “saiote” de mescla grossa, que eu amarrava um pouco abaixo dos peitos (passará na censura esta palavra despudorada?) e me obrigava a dobrá-lo sobre os pés, para não tropeçar.  Usei-o na piscina do Passeio Geral, usei-o depois no Recife, nos banhos de banheiro aberto.  O ridículo daquele simulacro de armadura medieval me impedia lavar-me onde, como e quando preciso – e ainda me valia a gozação dos outros Domingos Sávios – quero dizer, de todos os aspirantes, pois convém esclarecer que, por dois anos no Recife e mais um ano em Carpina, me coube o ofício de puxador de fila: eu era o menor do Colégio.  (Ao começar o segundo ano ginasial, em 1956, seu Bruno, nosso instrutor de Educação Física, me fez a ficha biométrica: 1,29m).  Em exata tradução: eu cumpriria o dever de apanhar de todos.  Sem direito a queixa ou revanche.

DE VOLTA DO PASSEIO, o Padre Prata me fez entregar meus papéis de transferência escolar a seu Abelardo (Abelardo Moreira do Nascimento), o coadjutor-secretário do Colégio, na sala que ficava à ponta do segundo pórtico, ao lado da passagem para a “Cafua”, a cobertura estreita, de paredes cinza e manchas d’água infiltrada, onde nos concentrávamos para formar fila depois dos recreios.
Começava uma rotina de cega obediência, que eu não supunha se compusesse com a gioiosa giovinezza retratada na efígie de Dom Bosco.  Mas era o que prescrevia o Regulamento das Casas Salesianas: obedecer sem discutir, “ainda mesmo quando tenhas carradas de razões”.  (Não posso crer que essas palavras – “carradas de razões” – tenham deixado jamais de ecoar às oiças de quantos foram confiados aos bons padres de Dom Bosco daqueles tempos). 
Por isso, em atenção aos novos e para assegurar crédito a este relato, faço ligeiro desvio para referir o sistema de vigilância panóptica – “suavizado” com o rótulo de Assistência – a que éramos submetidos, de quando batia o sino, pela manhã, até de noite, quando o sono dava certificado absoluto que nada mais faríamos de errado. (O nosso assistente – o dos Menores –, seu Raimundo – clérigo Raimundo Nonato Serrano de Andrade –, fazia contraste com seu Amadeu – não aprendi seu nome completo –, o assistente dos Maiores. Seu Amadeu, eu o conhecera em Cajazeiras, onde ele fez seu tirocínio. Desde lá, eu nunca o vi que não fosse falando baixinho, com um sorriso plácido de quem não se desencontrava do espírito de paz que lhe era conatural. Seu Raimundo, ao invés, era um conflito recalcado até quando tocava harmônio na capela ou pezunhava a gente no campinho de futebol de areia, em que se amontoavam trinta, quarenta meninos.  Baixo, branquelo e magrelo, ligeirinho, orelhas de camundongo, olhos miudinhos inquietos, braços cruzados, cabelo curto à moda da Casa, cerdas caídas para a frente como fios de escova, barba sovinando pelos, dedo nervoso empurrando para baixo o colar da batina, mão rolando as contas pretas de um grande terço, sem cessar, dentes pequenos comprimindo os lábios trêmulos.  Tenho com seu Raimundo um acerto de contas que, já agora, fica para o outro mundo.  Mas lhe devo um capítulo especial, se esta crônica algum dia se desdobrar em livro).
E assim se explica esta digressão a quem não tenha tido familiaridade com a hierarquia dos colégios salesianos: o Padre Conselheiro, como chefe da Disciplina, era o supervisor imediato dos assistentes.  E foi aí, em conexão com seu Raimundo, que o segundo Zé Rolim começou a modelar-se à minha lembrança: esbelto, meia altura, batina limpa, óculos de aros dourados, o breviário de bela capa de couro, tonsura aberta e bem cultivada, cabelo repartido em pastinha sobre a testa alta, preparando-o para a calvície tradicional dos Rolins cajazeirenses.

MAS ESTÁVAMOS FALANDO da Secretaria do Colégio, sobre cuja porta de entrada havia uma pequena estátua de Dom Bosco, sustentada por uma tabuleta embutida na parede.  Era o dia 16 de agosto de 1955, data comemorativa do nascimento do Santo.  Eu não podia saber disso, sem mais: fazia apenas 21 dias que estava incluído entre os aspirantes.  E vínhamos do dormitório para a capela, quando seu Raimundo nos deteve e, junto com seu Amadeu, nos organizou em quatro filas diante do Padre Conselheiro, que nos esperava sobre um pequeno estrado aos pés do Pai Fundador.  Silêncio absoluto.  E um grito, repentino:
– Bééécchi!
O Padre começava sua homilia, pronunciando o nome do lugarejo onde nascera Dom Bosco: a colina dos Becchi, em Castelnuovo d’Asti, perto de Turim.  Mas a rouquidão do orador elevou-se num timbre a que a garganta não respondia, e sua voz se desfez num berro de assustar.  Eu, o primeiro na linha de frente dos Menores, saltei para um lado, noutro grito, instintivo.  Depois, dando por mim, dobrei-me num risinho insopitável, disfarçando o papelão que acabara de fazer.  Seu Raimundo me ergueu pelas orelhas.  O Padre Conselheiro desceu do pódio e me designou um lugar à parte, para a evidência da punição.  Eu lhe pusera a perder o panegírico.  E só fui mandado para a capela, depois de iniciadas as orações da manhã.  Não pude entender a razão daquilo.  Dentro de mim, esperava ser socorrido, não castigado.  Mas não deixei de admirar a retórica do Padre Rolim, cujo fraseologia peculiar depois faria escola entre nós.
ACABEI DE MENCIONAR o primeiro castigo a que fui iniciado por um superior de alto escalão na escola da amorevolezza salesiana. (Seu Raimundo já me havia supliciado algumas vezes).  Outros vieram, muitos, muito severos.  Mas antes que eu folheie seu catálogo, a Justiça impõe a diferença abissal: meu Assistente castigava batendo os queixos, botando espuma pelos cantos da boca.  Era como se uma falta nossa – ou o que ele tomava como falta, o que quer que fosse – assinalasse a falência de sua perfeição como pedagogo.  Zé Rolim, não: era um médico de bisturi à mão, extirpando o mal – ou o que para ele era mau, o que quer que fosse – pela raiz, um lavrador que lamentava, quando muito, que a plantação não lhe garantisse boa colheita.  Raras vezes o vi zangado, de fato.  Aí então...

POR EXEMPLO: certa vez, em nossas férias de meio de ano, em 1956, ele suspendeu, sem mais, o recreio da tarde, e mandou todo mundo pro salão de estudo.  O ambiente era escuro, ou porque o dia terminava, ou porque houve corte de energia, ou porque a gente não fora aí enviada para estudar nada, ou porque os padres queriam economizar eletricidade.  Não sei o que houve de errado, algo de muitíssimo grave na divisão dos Maiores.  O fato é que Zé Rolim pôs-se de pé no estrado do Estudo, e soltou o verbo.  Ele fazia referência a malfeitos que desconhecíamos, e a razão de suas apóstrofes passava despercebida pelo menos a este escriba simplório.  Em certo ponto, esgotando o estoque de sua “caixa de ferramentas”, o Conselheiro aponta o dedo como pua sobre a plateia cabisbaixa, e se desata:
– Querem saber de uma coisa?  Vocês não valem o que o gato enterra!
O menino de doze anos não captou a sutileza da imagem, razão por que a circunstância se fixou mais em sua memória.  À mesa do jantar, perguntou a Carlos Chaves (o mais preparado de todos nós) o sentido de tal expressão:
– Isso não é conversa pra esta hora, rapaz!
Só mais tarde, fazendo pouco de minha ingenuidade, o colega me deslindou o enigma coprológico lançado ao nosso rosto pelo enérgico Tribuno.  Confesso: minha admirada assimilação de seu discurso andou próxima a “caramba!, temos tanto valor assim?”

OUTRO CASO, que deixará ver o quanto os nervos de Zé Rolim andavam como fios elétricos descascados, por aqueles fins de junho, julho de 1956: as provas semestrais estavam para terminar.  Era uma quinta-feira de tarde, hora de recreio.  A meninada comprimida no pátio, poucas diversões disponíveis.  No curto espaço entre as colunas da “Cafua” onde ficavam as “pias” para a lavagem dos pés (não havia falar-se em tomar banho depois dos jogos) e o oitizeiro-poleiro da arara do Padre Prata, plantava-se uma estaca de espiribol.  Jogo em duplas, saindo os dois que perdessem.  Uma fila de espera.  Eu seria o próximo a entrar na disputa.  Mas logo alguém se prevalece de eu ser o menor do grupo.  Burrão (Luís Gonzaga Qualquer-Coisa, uma turma depois da minha) me toma a vez, me “encarneira”, como dizíamos em nossa gíria de reclusos.  Eu fico olhando aquele cangote alto, a cara franqueada ao sol, esmurrando a bola, debochando da minha fragilidade.  Olho para a bola girando, olho para a queixada saliente que valeu o apelido ao usurpador da minha vaga.  Num átimo, minha mão se arma em punho.  O soco inesperado derruba o atrevido, a mancha vermelha inchando-lhe o rosto.  Ele se levanta.  A luta (na qual eu sairia perdedor) não acontece.  O Padre Conselheiro vira tudo.  Do pórtico que atravessa os dois pátios, ele dispara alucinado, a batina esvoaçando.  O que tem à mão é a Gramática do Ravizza.  Pois será com a gramática latina que eu levarei a surra mais vergonhosa da vida.  Também fiquei com a cara machucada.  Zé Rolim só para quando percebe que um menino de doze anos está todo urinado a seus pés. (Para quem não conhece a obra do Padre João Ravizza, seja suficiente dizer que dá a metade do dicionário Aurélio, em peso e número de páginas).  Não sei em que outra esquina da vida senti tamanho pavor.  Mas, sendo pouco a surra, fui isolado de castigo, sem apelação.  Pensei: “Chegou o meu fim” – e tremia, e gemia um soluço surdo.  Minha agonia beirava ao desespero, quando apareceu o Padre Prata e tirou do bolso as chaves do dormitório.  Concluí: “Vou ser mandado embora. Meu Deus, o que direi aos meus pais?” (Muito cedo na infância, eu quis ser padre por vontade própria, só e só, sem nenhuma “estimulação” da família, mas era isso mesmo o que me cobrava brios para que não lhe causasse o desapontamento da expulsão. Meus pais tinham “certeza” que eu estava no céu: era o que minha mãe lia e respondia nas cartas que trocávamos, abertas, umas e outras, pelo Padre Catequista-Diretor Espiritual).  Pois foi o Catequista Padre Prata quem teve piedade de mim:
– Tome.  Corra ao dormitório.  Vá trocar de roupa.
Calado, obedeci.  Calado permaneci, até à noitinha, no refeitório, quando o Conselheiro me excomungou da mesa dos demais aspirantes e me deportou para a meia altura de um tablado à parte, notificando urbi et orbi:
– Prestem atenção: o rapazinho ali está proibido de falar com qualquer de vocês, por uma semana.  Vocês ficam proibidos de lhe dirigir a palavra.  Se ele transgredir essa ordem, o castigo se prorroga.  Quem trocar uma palavra com ele, lhe fará companhia na mesma cafua. 
E como arremate da sentença, que devia ainda lhe parecer branda:
– E tem mais, seu “Cajazeiras”: você está suspenso das provas que ainda faltam neste semestre.
Semelhante vexame já me havia sido imposto um ano antes – a mim e a Milanez (Carlos Alberto Milanez, o segundo menino menor do Seminário) –, pela tolice que adiante se verá.  De todo modo, o prato de sopa, o pedaço de pão, o prato-feito principal, o copo d’água – porções racionadas, para ferretear-me como réprobo – eram penitência leve, em comparação com a agravante da pena: eu levaria bomba em duas das matérias do segundo ano.  Não houve como ingerir alimento àquela noite.  E eu não tinha a quem recorrer.  Chorava – e não podia fazer mais nada.
Direi então que, por sorte, passados uns dias, já iniciadas as férias, o Padre Prata passou no salão de estudos, bateu no meu braço, e me chamou a seu gabinete:
– Sua situação está bastante complicada, eu nem sei como contorná-la.  O Padre Conselheiro continua muito aborrecido.  Você ainda não foi lhe pedir desculpas...
 Até ali, o medo me guiava.  Súbito, sem que eu mais nada esperasse, um senso instintivo de justiça desadormece certa subterrânea altivez no menino sertanejo.  Pensei: “Mas se ele mandou que eu ficasse mudo... Logo com ele é que eu deveria falar?”  Gaguejei:
– Padre, não sei se ainda tenho cara pra isso.  Ainda me sinto muito... envergonhado.  Não sei o que poderia dizer...
O amorável Guia espiritual insistiu na preocupação:
– Mas vá... Ele está esperando por você.
– E depois... – prossegui – não sei como lhe diga... 
Numa iluminação súbita, balbuciei o que, em casa, meu pai me daria confiança a que lhe dissesse:
– Padre, eu queria lhe perguntar...  Eu queria pedir desculpas ao meu colega.  Eu bati nele...  Ele está com o olho...  O Padre Conselheiro me bateu...  Acho que... ele nem viu o começo da briga...
O argumento em contrário cortou-me a fala:
– Olhe, você está perto de ser mandado de volta pra casa.  E está prejudicado por não ter feito as provas.  Deixa o Aspirantado e vai perder o ano.  Não é isso o que quero pra você, sabe?  Eu já falei com o Padre Conselheiro.  Ele vai perdoar o que você fez. 
Eu teimava dentro de mim que era ao Burrão que deveria desculpar-me, e me sentiria mal se não o fizesse.  Mas beijei a mão do meu Orientador, e entrei na sala ao lado para beijar a mão do Padre que me batera.  (O Conselheiro, porém, não aceitou o meu gesto. Afirmo, aliás, sem muita hesitação, que certa macheza muito sua sempre inibiu o bravo Zé Rolim de dar a mão a beijar a qualquer pessoa, em qualquer tempo). 
Conversa curta e calma, de quem realmente esperava o ato de rendição:
– Está bem, “Cajazeiras”, não faça mais isso.  Vou dispensá-lo do castigo.  E, sim, você ficou devendo quantas provas?
– As duas últimas.
– Uma foi Português, comigo.  Vamos fazê-la amanhã de manhã.  A outra...
– Inglês.
– Eu vou falar com o Padre Viet.
No dia seguinte, eu começava a ressuscitar para a vida comum.  Às nove horas, o Padre Rolim me fez sentar à minha mesa no Estudo, me entregou a folha dupla de papel almaço, e me passou umas poucas questões de Português.
– Quando terminar, deixe a prova sob a campainha do estrado – e se retirou.
Lá fora, no andar térreo, as vozes dos colegas em recreio.  Tentei concentrar-me, mas o meu espírito vagueava.  E eram das mais difíceis as perguntas solicitadas.  Envergonhei-me: “um fracasso seguido de outro, e nas mãos de quem!”  Ah, mas a solução estava coladinha à minha angústia: era só levantar a tampa da mesa, onde se guardavam nossos livros.  Veio-me a tentação: “Colo?” “Não, não colo”.  “Vou colar. Por que não? Ninguém vai ver. O Padre Conselheiro estava de tênis, ele deve estar jogando futebol, lá embaixo”.  “Não, não vou colar. Não vale a pena”. 
Preenchi respostas do que sabia, levantei-me e fui colocar a prova no lugar indicado.  Quando me volto, surge-me do nada, como uma parede preta impedindo-me a passagem, a batina de Zé Rolim:
– “Cajazeiras”, você colou a prova!
– Não...
– Sim, você colou a prova!
– Não, Padre.
– Você colou a prova, “Cajazeiras”!
– Não, senhor, Padre, eu não...
– Colou, que eu vi.
Sem mais forças, sucumbi em borbotões de choro:
– Padre, eu não colei nada.
Minhas pernas descambaram.  A mão do Conselheiro me segurou:
– Está certo, “Cajazeiras”, sei que você não colou.  Eu estava ali atrás da cortina.
Havia, de fato, uma cortina bege, transparente, escondendo a entrada do Estudo.  Eu desabei.  Meu examinador me levou ao lugar da prova.  Entreguei-me de vez, o rosto caído sobre os braços, no quadrado da mesa. 

FAÇO RECUO de quase um ano, para tomar a companhia de Carlos Alberto Milanez, no segundo Passeio Geral de 1955, quando este menino sertanejo viu o mar à primeira vez.  (Ah, o mar para quem vinha da caatinga, o verde mar dos Arrecifes)!
Talvez hoje ninguém acredite que havia apenas três praias, em sentido próprio, na capital pernambucana de meus tempos de colegial, e que a mais distante era a de Boa Viagem.  Pois a praia de nosso passeio era a mais distante: um areal deserto chamado Piedade, no sopé dos Montes Guararapes.  Nós nos arranchamos no oitão da igrejinha à beira-mar. Podíamos nos espraiar para a direita até a curva do Cabo de Santo Agostinho, mas seria falta grave desviarmos o olhar à esquerda, rumo da cidade.  O motivo?  Podia acontecer que, dos infernos, o Demônio despachasse alguma “pessoa do sexo oposto” (“mulher” era palavra infanda, em tudo e por tudo incompatível com os nossos hábitos de pureza) para, em pleno meio de semana, vir posar de maiô e induzir os meninos de Dom Bosco ao pecado sujo.  (De maiô: ainda não se falava em biquíni, a não ser em rarefeita menção a uma francesa escandalosa de nome Brigitte Não-Sei-o-Quê).  E caminhar, jogar, pular, cantar, inventar coisas: mas na areia!  E quase me foge anotar que todos os nossos jogos nós os praticávamos vestindo calça.  Calção, nem pensar.  (Bem, os padres tinham o dever de esmerar-se: jogavam de batina).  A exceção especialíssima nos era concedida nos passeios à praia: podíamos dobrar a calça até quatro dedos abaixo do joelho e tomar “banho de mar” até o meio das canelas.  Os assistentes redobravam na Assistência.  Ninguém se atrevesse a afundar-se num mergulho ou noutra temeridade.  Até o Padre Catequista vigiava que ninguém maculasse a alma com água salgada.  
Rebus sic positis (como gostava de repetir Zé Rolim), a que loucura haveria de cometer-se o menino matutinho do Oratório de Cajazeiras?  O mar sem fim, o quebrar das ondas em espuma, o vento soprando sobre os coqueirais em renque, jangadas ao longe, tudo era uma paisagem de encantamento, para quê mais?  Eu não sabia nadar, por que arriscar-me a ser puxado pela força das águas? Assim pensei, assim procedi: meti-me a cavar o chão com uma casca de coco, atirei-me no buraco, e me cobri de areia.  E as horas do dia seriam passadas sem que eu me levantasse daquela ioga de Buda Enterrado.
Mas havia o diabrete chamado Milanez.  O meu parceiro da esquerda da fila se divertia em criar problemas, sem receios: seu Raimundo rangia os dentes à sua indisciplina, mas o Padre Prata o brindava com atenções todas suas.  (Milanez era de Natal. Aliás, ele se gabava de ser pet de Dom Ladislau Paz, que havia sido nosso Padre Inspetor até meados de 1955. Nas mãos dele, eu vi, certa vez, um cartão-postal que lhe enviara o bispo de Corumbá, Mato Grosso. E consta que, pra deixar o Seminário, aquele protótipo de “relaxamento” teve que ser expulso duas vezes).
Milanez resolveu praticar contra mim a sua boa ação do Passeio Geral: apanhou outra catemba de coco e, sob o pretexto de ajudar-me, deleitava-se em jogar areia dentro de minha roupa.  Inútil reclamar.  Em dado momento, estava tão sujo quanto eu.  Parou, e percebeu que, para livrar-se da presepada, outro remédio não haveria senão a água.  Levantou-se, sacudiu-se, e desceu para o mar, satisfeito por me haver deixado em petição de miséria, grudado da cabeça aos pés.  Vendo que ele se saía bem na empreitada, animei-me e lhe segui o exemplo.  Mas não tivemos sorte: uma onda desobediente passou por cima da ordem dos superiores e decretou o fim de nossa alegria.  Tentamos fugir para trás de um coqueiro, como os primeiros pais após a Tentação, mas, como eles, estávamos nus perante o mundo.  A pena em primeira instância veio pelo poder de seu Raimundo, que nos pôs a secar como estátuas xifópagas, unidos pelas costas, alternando a reza de ave-marias, enquanto a areia quente nos queimava os pés.  O Padre Conselheiro aperfeiçoou o serviço, à noite, pondo-nos à parte no refeitório e impondo-nos silêncio obsequioso por uma semana.  Nem entre si os dois condenados podiam conversar.  Não tenho conhecimento que ninguém tenha sido castigado assim, em tempo nenhum e em colégio nenhum entre o céu e a terra, mas, como eu disse e ficou demonstrado, foi uma tolice a causa de tal apocalipse.

NÃO ME DESPEDIREI de Milanez, sem arrolar outro episódio ridículo em que fomos atores: terminava o ano de 1955, e eu devo reconhecer que certo nervosismo pairava no ar, contagiando também os mestres, que não eram de ferro.  Descontado isso, peço não esquecerem que o meu colega e eu tínhamos não mais que onze anos, e eu ainda contava em dias meus fervores de candidato à santidade.  Era de noite, e cuidávamos de realizar as tarefas para o dia seguinte.  Na mudança de lugares que era praxe fazer-se (em geral, por ocasião do Exercício da Boa Morte, na última quinta-feira do mês), não sei o que deu na cabeça de seus organizadores, que puseram um ao lado do outro o menino de Cajazeiras e o campeão de diabruras do Aspirantado.  As carteiras de estudo eram dispostas em duplas.  Pois, em dado momento, Milanez se aproxima de mim, cochichando, e pede que lhe explique alguma coisa.  Aquilo era oferecer cola?  Não sei, só sei que não estávamos tirando a quietude do ambiente.  Mas eis que, sem nos darmos conta, o Padre Conselheiro aparece, nos puxa pela orelha e nos faz acompanhá-lo como acólitos, enquanto ele vai rezando o breviário.  Indo e vindo, percorremos os corredores entre as carteiras.  Silêncio constrangedor. Perda geral de atenção.  Chegando às Orações da Noite, fomos promovidos a anjos-guardiães de Nossa Senhora Auxiliadora, postados em apoteose diante do quadro na parede do Estudo.  Ali ficamos ainda durante o sermãozinho da Boa-Noite (do Padre Prata).  Seguindo depois no rabo da fila, reencontramo-nos, no dormitório, com o travesseiro de palha da velha cama Patente, onde pudemos investigar a quem havíamos ofendido e por que fomos humilhados.  Comigo levei para a noite e para o resto da vida estas duas indagações fundamentais: como foi que o Padre Catequista não se atrapalhou em suas bondosas palavras, vendo em pé, a meio metro de sua reverenda pessoa, os dois menores meninos confiados à sua guarda e expostos à execração por um nonada; e como foi que o Padre Conselheiro conseguiu recitar, sem se distrair, as belíssimas orações do breviário. (Aperi, Domine, os meum ad benedicendum nomen sanctum tuum; munda quoque cor meum ab omnibus vanis, perversis et alienis cogitationibus...).

PASSA DO MOMENTO, já, de fazermos uma pausa esclarecedora: quem tenha tido a paciência de ler o que até aqui rascunhei – com escancarada franqueza, e sem negar-me a uma veracidade de pormenores que espero emprestem valor documental ao presente raconto – estará indagando se isso que faço com o Padre José Rolim Rodrigues não vem a ser uma caricatura tardia, um dossiê acusatório, ou até uma vendeta anacrônica, em vez do balanço de um débito impossível de pagar, o preito de gratidão, o louvor saltitante a quem tanto o merece e tanto dele fugiu, por tanto tempo e tantos meios.
A pergunta a que respondo é parte da biografia que, de mim, não pode ser visível aos olhos.  Eu nunca vi dificuldade em constatar que não é paradoxo nenhum o paradoxo que nela se contém.  O meu ser mais recôndito convive em santa paz com a severidade rascante do Zé Rolim dos anos do Recife.  Para as reservas de minha formação humana, não há como enquadrá-lo na figura de um inquisidor medieval (enquanto, ao contrário, não há como retirar do assistente Raimundo Serrano o papel de carrasco nazista).  Absorção compreensiva das pessoas e das situações, tão própria do meu temperamento, será isso?  Absorção que facilita a absolvição?  Se a explicação tem que ser breve, e si licet magna componere parvis, evocarei um acidente que me ocorreu quando eu tinha quatro anos: certa manhã, apenas despertado, pulei pra dentro do curral onde meu pai ordenhava duas vaquinhas magras.  Terminado o serviço, o velho desamarrou os bezerros e me entregou o potinho de leite para que eu o levasse à minha mãe.  Eu escorreguei na saída, o potinho se quebrou, todo o leite foi pelo chão, e foi-se embora uma parte boa do nosso sustento.  Numa reação que não pôde controlar, meu pai me deu uma lapada com o que tinha à mão – o chiqueirador – atingindo-me o joelho direito.  Da ferida aberta pelo nó da correia ficou uma cicatriz.  Mostrei-a muitas vezes, já homem feito, ao velho Cícero Moreira, e os dois nos ríamos juntos, eu caçoando dos rigores de sua “pedagogia”, que nem assim conseguiu “dar jeito” ao filho estabanado.
Pois é rindo, hoje, e não esgotando cacimbas de mágoa ou ressentimento, que o pícaro de meio século atrás esquadrinha as peripécias de sua vida como educando de José Rolim Rodrigues.  Não sem motivo a figura de meu pai reaparece nesta relembrança...
E sublinho o meio século, para rastrear a distância que a “modernidade” de Zé Rolim como que nos faz esquecer.  Ele nos educou, por óbvio, como foi educado, como foram educados os nossos pais.  Permitam-me refazer o cotidiano de seus anos formativos, invocando o testemunho do sociólogo João Bosco Guedes Pinto, que foi salesiano em época que medeia a nossa e a do nosso Conselheiro: menos de duas décadas antes da nossa, ao restituírem um aspirante a seu meio familiar, os superiores depositavam um jarro de flores, em lugar da xícara, à mesa do refeitório que fora daquela “alma morta”.  A “homenagem póstuma” tinha fortíssimo simbolismo: o perfume das flores atenuaria o odor de enxofre deixado por Satanás nos espaços ocupados pelo ímpio.  Se por um dedo se conhece um gigante, nada mais se dirá para deixar patente a rigidez aterradora em que se forjou a têmpera dos educadores de nossos educadores.

ZÉ ROLIM MANTINHA maior aproximação com os Maiores, entre os quais desenvolvia suas preferências esportivas.  Não recordo que frequentasse a divisão dos Menores, alguns dos quais, no entanto, se soltavam a falar-lhe com familiaridade não ensaiada ou precavida.  Ouço o José Costa (um magricela da minha turma) irradiando-lhe um jogo de futebol e usando estas palavras malsoantes aos nossos ouvidos castíssimos – e por isso nunca esquecidas: “Decadela (jogador do Sport Clube) mata a bola no peito e suaviza na coxa”.  Antônio Carlos Pereira, Edmílson, Negro Eudes (todos também do Recife, ou adjacências), e até o incorrigível Milanez, contavam-lhe alguma anedota boba.  Zé Rolim mostrava-lhes um sorriso de complacência e afeição.  Mas não me recordo de havê-lo visto abrindo-se em risadas desmedidas.  Era humour, um tanto à britânica, o seu senso de humor: contido, irônico, pra dentro.  Uma vez, por exemplo, ele chamou um dos mais altos de seus primeiranistas, oculto nas últimas carteiras da sala de aula (que ficava na parte de fora da “Cafua”, portas abertas para o campinho de futebol dos Menores, destruída para ceder lugar ao rico teatro do Colégio, nos dias correntes), um mulatão gordote e meio tapado, chamado Aguiar:
– Aguiar, como vai o seu latim?
Aguiar rosnou alguma coisa que ninguém ouviu.
– Vamos lá, Aguiar: rosa, rosae... Decline.
Rosa, rosae, ross... ros..., ross...
– Não, Aguiar.  Diga claro: rosA, rosAE... Eu quero ouvir as terminações.
– Pois é, seu Padre, é como estou dizendo: rosA, rosAE..., ross... ros... ross.
O camarada baixava a voz, cada vez mais, à medida que repassava os casos, do dativo ao ablativo, e olhava para os lados esperando um sopro.  Ninguém lhe dava ajuda.  Aprontava-se a gargalhada.  Zé Rolim foi adiante:
– As terminações, Aguiar.
– Seu padre, olhe: rosA, rosAE..., ross... ros... ross.
Nós explodimos.  Aguiar danou-se:
– Cadê o palhaço, cadê o palhaço?
Nós respondemos com uma gargalhada mais alta.  Aguiar arriou-se na cadeira.  Zé Rolim se deliciava, tongue-in-cheek.

ATÉ QUE VEIO 1957.  Nós fomos mandados para Carpina.  Zé Rolim foi mandado para os Estados Unidos, para voltar como o terceiro Zé Rolim de meu repertório, em julho ou agosto de 1958.  Ele vinha substituir o Padre Aguinaldo (Lima Viana), que iria estudar em Roma.

EU SEI DO MILAGRE, mas nunca pude descobrir quem foi o santo, e juro que daria muito para sabê-lo.  Conversei sobre o assunto com mais de um colega.  Eles também, perplexos, se indagam: o que se passou, que o Mestre retornou transformado da terra de Tio Sam?  O mesmo Zé Rolim, outro Zé Rolim.  Mais aberto, mais solto, “mais democrata”, com nova concepção da Disciplina.  Um gaiato sugeriu que, além do retrato de Mamãe Margarida, ele viu por lá a cara de outra mulher: a Estátua da Liberdade.  O fato é que o Padre sofrera (ou melhor, gozara de) uma metamorfose.  Não mais o Disciplinador a ferro e fogo, que batia em menino.  (Vale, também, aventar a hipótese contrária: nós é que mudamos, eu mudei.  Mas não tanto: eu devo ter mudado pra pior, pois iniciava a famigerada “crise da adolescência”, já aberta em conflito com o Padre Aguinaldo).  Mostrava-se o Zé Rolim “horizontal”, “pé-no-chão”, leve e lépido qual não pudera ser no Recife.  Isso, por certo.
Ir aos Estados Unidos era façanha capaz de “encher a bola” de muita gente naqueles tempos.  Ainda hoje, não falta “bolha-murcha” que bata nos peitos esnobando tal “vantagem”.  Zé Rolim falou pouco sobre o que esteve fazendo por lá.  Em duas ou três Boas-Noites, referiu-se à própria experiência, mas contando, com singeleza, suas dificuldades de aprendiz.  Não lhe foi fácil atender aos fiéis no confessionário.  “Adesso, mangiare!” – esse italiano se fixou em minha mente como dito a ele, poliglota e professor de Inglês, por umas freiras que lhe serviram de “intérprete” numa viagem de ônibus, nos seus dias de calouro em território anglófono.  “Pra vocês verem a diferença que há entre a Escola e a Vida” – era a moral da história. 
Em Carpina, aposentado o Padre Viet, foi Zé Rolim o nosso professor de Inglês.  (Seu Edelzuito – o clérigo José Edelzuito Soares, assistente dos Maiores – ocupou essa função por um semestre, se não me engano).  Conhecemos, então, o inglês puro, em fala nativa, num livro acompanhado de long-plays, método precursor do Natural Approach de nossos dias.  A obra era de um padre jesuíta.  Tinha uma capa dura, amarelada, e a editora parece que era a Agir.  Meus ouvidos ainda ouvem a primeira lição: “In the Lobby of a Hotel – Good morning. I’m Mr. [esqueci-lhe o nome] who have I room reserved”.
Zé Rolim repetia: “room reserved” – e pudemos entender que era imprescindível enrolar a língua em rocambole, para emitir o r inglês.  O Professor insistia nisso, afirmando, com humildade, que a “distância” de pronunciação foi o que lhe trouxe maior embaraço em sua Listening Comprehension nos States.  Nós nos esforçamos por alterar nossa pronúncia nor-des-ti-na.  E ele completava: “Além da pronúncia, uma língua é vocabulário.  Armazenem vocabulário” – lição das mais úteis que me ensinou.

EM CARPINA, perdurava a distância entre nós e o mundo, mas, retornando dos Estados Unidos, Zé Rolim debitava-a já então, por via oblíqua, aos padres superiores.  Um padre americano (colega dele, de um ano antes?) veio visitá-lo no Aspirantado e estranhou que fugíssemos de sua presença, conforme era de praxe.  O Conselheiro chamou a si a reprimenda na preleção da Boa-Noite:
“But they are very shy!” – ele repetiu a frase – e carregou na tradução: – “Mas como eles são matutos!”  Que vergonha, hein?

SERÁ PRECISO REGISTRAR, sem falta, as virtudes vocais do Padre Zé Rolim oficiante das Vésperas (por um tempo, em Carpina, cantadas à noite).  E eu as relembro ainda mais, porque tivemos o privilégio, Luís Márcio (de Oliveira Assunção) e eu, de ser, entre 1959 e 1960, os entoadores mais solicitados do Deus, in adjutorium meum intende – os dois trocando de voz, cada qual mais orgulhoso da entonação baritonal que ia adquirindo.
NOUTRO CAPÍTULO, lembrei como o novo Conselheiro chegou a Carpina e como se insinuou pelos pórticos do Aspirantado, logo à primeira noite, para, num relance, verificar que por ali havia muita “safadeeeeza”! 

DESNECESSÁRIO PERFILAR o Zé Rolim esportista.  Todos o recordam, todos o admiram por isso.  E ele era bom em vários esportes: a víspora para entreter o ócio dos aspirantes em férias, o voleibol e, sobretudo, o futebol, ainda que, segundo alguns superiores mais antiquados, essa prática não fosse condizente com a vida religiosa.  
No voleibol, estou a vê-lo, batina surrada, no campo que ficava ao lado dos oitizeiros próximos ao refeitório, levantando a bola, no time dos Maiores, contra os Noviços de Jaboatão, em meio aos quais irrompe a estatura de Quirino (Antônio Quirino Moura).  
E Zé Rolim não perdeu a vocação por ser um craque no futebol, ele, o Padre Murilo e, menos excelente, o Padre Samuel (Samuel Barros).  Do Padre Murilo (Murilo Domingues da Silva, hoje professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco), ouvi que, em São Paulo, quando estudantes de Teologia, os rapazes da Lapa foram jogar contra os juvenis do Palmeiras, e aos dois – Zé Rolim e ele – foi oferecido contrato profissional com o velho Palestra Itália, desde que deixassem a batina.  Nem por isso o futebol os perdeu. 
O futebol foi, talvez, a habilidade de Zé Rolim que mais o terá tornado humano perante a nossa memória. Posso dizer, aliás, que os nossos melhores momentos no Recife aconteciam quando os aspirantes jogavam contra os Maiores do Internato, e nós alcançávamos a graça de sairmos do confinamento para irmos ver Zé Rolim e Murilo anteciparem a “tabelinha” que depois consagraria a dupla Pelé-Coutinho. (Reconheçamos que os padres tinham algum handicap sobre os atacantes do Santos: calçados de tênis, enquanto os demais jogavam descalços, eles enrolavam a bola na batina e rompiam caminho para o gol do adversário, levantando a areia do campo (hoje cercado, coberto de grama e encurtado para ceder espaço à piscina olímpica que aí se construiu). 
E, como todo apaixonado por sua arte, o meia avançado dos Salesianos não gostava nem um pouco de alinhar-se entre os perdedores.  Uma vez, num jogo contra os Maristas de Apipucos, os Aspirantes apanhavam de goleada (5 x 1, se estou bem lembrado).  A bola saiu fora de campo.  O juiz apitou e disse:
– Lateral.
Zé Rolim irritou-se porque um seu parceiro perdia tempo sem entender a palavra “nova”, e gritou ao outro, para todos ouvirem:
 – “Lateral” é “Fora”, sua besta!

POR ESSAS E OUTRAS, guardo de Zé Rolim a lembrança de uma personalidade integral, sem dobras (sem dobras vem a ser o contrário da palavrinha grega hipócrita – sabendo-se quanto a Hipocrisia faz visita frequente às casas religiosas), reto, correto, linheiro como uma baraúna sertaneja.  Um homem másculo, mas sem aqueles ares de papo estofado que o Padre Belchior exibia com certo prazer.  Um religioso cuja virtude maior foi aparentar não ter virtudes, sem medo de mostrar-se ao natural, guardando-se em si, sem cabotinismos, sem pescoços tortos, sem carolices de opereta.  Não o contemplo escorrendo terços entre os dedos, mas o tenho em viva lembrança rezando o seu breviário sacerdotal.  E nunca o vi em murmurações queixaminhosas contra nada nem ninguém.  Por isso, nunca tive dúvidas que Zé Rolim seria sempre padre e sempre salesiano, não importando o expurgo operado pelo Padre Agenor Vieira Pontes, o Inspetor fascista de 1958-1964, nem as facilitações trazidas pelo Concílio Vaticano II para quem quisesse lançar contra o cartão de crédito a fatura de seus votos religiosos.  (Da mesma firmeza não me convenciam, àqueles tempos, outros contemporâneos: o próprio Murilo Domingues, Manuel Caldas, Ovídio Valois, Olavo Coimbra, Luís Peixoto, Luís Guerra, João Batista Costa, tantos).  E nem importa se, já octogenário, só por três anos lhe foi assinada a direção de um colégio.  Poderia ser diferente para quem preferia o esconderijo da simplicidade?

GRANDE ZÉ ROLIM, de quem me professo devedor do que há de primeiro e permanente em minha formação.
Foi ele que me ensinou a comer de garfo e faca, segurando o garfo com a mão esquerda. (“Se todo mundo consegue, por que não você?”)
De seu magistério e seu exemplo, aprendi a sacralidade da palavra, o zelo e o respeito pela palavra escrita.  Ele me deu lições que não se ensinam mais a quem se mete a escrever: que, além do vazio de idéias, é preciso prestar atenção à aspereza dos sons na frase, aos solecismos, ecos, hipérbatos, cacofonias, verdadeiros carrapatos no pelo da língua.  “Evitem, quanto possível, os advérbios em mente” – recomendação que está na Réplica de Rui e é seguida por Gabriel García Márquez, conforme seu próprio depoimento.  “Refaçam a frase, para não escreverem com que” – foi outro recado do Mestre, encontrado no Alencar de Como e por que sou romancista
Retrato-me apresentando-lhe uma redação de meu primeiro ou segundo ano ginasial: “Os aspirantes gostaram da festa, festa esta que...”  Ou: “Os Menores mostraram gratidão a seus superiores, coisa que os Maiores...” A composição me é restituída sangrando de tinta vermelha.  Zé Rolim corrige-a: “Para que repetir festa?”  “Gratidão não é coisa. Em vez de coisa que, diga: o que os Maiores...”  Quantas vezes tenho encontrado esses vícios em textos de figurões cujo nome corre mundo com fama de “escritores”? 
E é neste ponto, antes que chegue o fim do mundo, que devo pedir perdão, ao Padre Rolim e a Coelho Neto, por um pecado meu daqueles tempos: minha nota em Redação era sempre a pior (depois das notas de Desenho, de seu Raimundo Serrano).  Um dia, em velho exemplar da revista O Colegial, deparei uma passagem longa do romancista maranhense, a qual, mais ou menos, se encaixava no tema da composição semanal.  Sem o menor remorso, cuidei de aparar-lhe algumas palavras, caprichei na paráfrase, e tasquei meu nome como autor da preciosidade.  Saí-me bem no engodo, mas fiquei com de cara no chão.
O amor pela língua pátria implicava na busca da variedade vocabular – e, sob esse aspecto, Zé Rolim foi inexcedível.  Todos os dias, durante os dois primeiros anos em que nos ensinou Português e Latim, ele iniciava a aula escrevendo dez palavras “difíceis” (liana, meandro, hausto, áscua, precito...) no quadro-negro, com os respectivos sinônimos. Ao lado delas, uma estrofe d’Os lusíadas, que também deveríamos memorizar.  No dia seguinte, nosso primeiro dever era devolver ao papel a estrofe do dia anterior, com cinco vocábulos dos que aprendêramos.  Ao mesmo tempo, o Mestre prescrevia mais dez palavras e nova estrofe de Camões.  Façamos o cálculo: o ano letivo tem cerca de trinta semanas.  Trinta semanas de cinco aulas – da segunda à sexta-feira – fazem 150 dias, os quais, multiplicados por dez sinônimos/dia, totalizam 1.500 palavras novas ensinadas.  Haverá quem acredite que assim se procedia in illo tempore?  É certo que os linguistas de hoje desaprovam tal método “cartesiano”, “Port-Royal”, “fora de contexto”.  Danem-se os linguistas.  Importa o fato que aprendíamos: a eficácia não está no método, mas em seus resultados.  E d’Os lusíadas, o que sei de cor, até hoje, foi o que, dia após dia, nos foi exigido por Zé Rolim.
Foi Zé Rolim, ainda, quem, desde o primeiro ano ginasial, nos iniciou no conhecimento dos grandes nomes das letras de Portugal e do Brasil.  E eu devo declarar que foi por influência sua que meu interesse derivou da Matemática, do Curso Primário, para a Literatura, que marcou a minha vocação ao longo da vida. (A Matemática nos era ensinada pelo Padre Edivaldo Gonçalves Amaral, hoje arcebispo resignatário de Maceió, AL).
Pelas mãos de Zé Rolim, caiu-me às mãos o primeiro livro cuja leitura eu fui capaz de entender por mim mesmo.  Foi em 1955, nas férias de fim de ano.  O autor chamava-se Hugo Mioni, publicado nas Leituras Católicas.  Que felicidade!  Foi o meu estalo de Vieira, de onde me veio um dos grandes prazeres da vida, ao lado da apreciação musical e do outro que se sabe...
E por falar em Vieira e seu estalo, vem a propósito aduzir que, além de alguns sermões de Vieira, poucos outros textos literários eram tolerados no Seminário: A retirada da Laguna, Os sertões, Minha formação, a Nova floresta de Bernardes, as obras de Malba Tahan, discursos de Dom Aquino Correia, a coleção de Malba Tahan, e, mais tarde, o Clama, do Padre Belchior, e Águia ferida, poesias do Padre Nestor Alencar (e cuja capa horrorosa nos sugeriu trocar-lhe o título, na Faculdade de Lorena, SP, para Urubu chumbado...).  
Porém, o maior incentivo à leitura o Padre José Rolim nos dava era com o seu próprio exemplo.  Quantas vezes, em minha memória, a sua imagem aparece de livro à mão!  Como fazer o elenco dos livros que ele devorou à nossa vista, naqueles idos longínquos?  Menciono algumas de suas leituras: Fulton Sheen (no Recife), com a capa vermelho-gritante de Filosofias em luta, e azul-pacífico de Angústia e Paz; Gustavo Corção (em Carpina), com o pequeno formato d’A descoberta do outro e Lições de abismo.  (Certifico forma e conteúdo desses títulos, não só porque mantenho viva a figura do Leitor a que remetem, mas também porque as comprei, depois, em sebos, para lembrá-lo mais de perto). E o Plínio Salgado da Vida de Jesus (no refeitório do Recife, ele fez ler o Diálogo da Última Ceia, uma das melhores páginas dessa obra) e a Geografia sentimental, de que, em Carpina, por indicação sua, eu recitei um trecho na festa de 7 de Setembro de 1960).
Volto ao Professor de Inglês: estamos ainda no Recife, férias de 1955.  Como todo menino “saliente”, eu me atirei a aprender essa língua, “sem mestre”, antes de iniciarmos o estudo da matéria no ano seguinte.  Como não tínhamos maior contato com o Padre Viet, Zé Rolim servia de pronto-socorro para as dúvidas do iniciante.  Por causa disso, e por um capricho da memória, todas as vezes que encontro a palavra step, associo-a à sua pessoa, ao lugar e à hora em que lhe perguntei, à mão o velho manual do Padre Calasans:
– Padre, que quer dizer step?
 O Mestre transferiu a pergunta ao primeiro de nossos colegas:
– Carlos Chaves, que quer dizer step?
E estava ali outra lição: que eu estudasse mais, porque alguém de minha classe já me tomava a dianteira.
Mas eu também tive o meu momento de glória, hélas!, embora não tenha durado mais que uma hora de aula.  Foi no primeiro dia do segundo ano.  Causa fuit Pater is.
Entra na história, neste ponto, o mais útil material de aprendizagem do Latim que tive então sob os olhos:
– “Cajazeiras”, cadê a sua Caderneta?
Zé Rolim havia desfiado, numa sequência de perguntas e respostas, as dificuldades da Gramática do Ravizza.  A cada aula, ele transferia ao quadro-negro os passos a aprender, da forma mais simples: Complemento de Modo, Ablativo Absoluto, Casos do Objeto Direito e Indireto...  Mas, além de ter perdido o seu ensino por metade do primeiro ano, só tínhamos duas aulas semanais em Cajazeiras (com o Padre Osvaldo Honório), enquanto no Aspirantado todo dia era dia de Latim.
Mostrei ao Mestre a caderneta (confeccionada na Tipografia do Colégio, com sobras de papel de prova, recortadas pelos aspirantes nas noites de férias) contendo a cópia de suas lições.
– Veja, “Cajazeiras”, você copiou apenas as aulas do segundo semestre.  Tome uma caderneta nova, e passe para ela tudo o que está nesta aqui.
E me entregou a sua própria Caderneta de Latim, que eu copiei de ponta a ponta.  (Acho que, ainda hoje, sou capaz de identificar, com alguma facilidade, a letra do Padre José Rolim).  E eu, no que podia haver de disciplina no verdor dos meus onze anos, passei as férias estudando as suas famosas lições.  Dei-lhe muito trabalho, fazendo-lhe perguntas e mais perguntas sobre o que não me parecia claro.  O Professor me mandava aos exercícios d’A proposição latina, do Ravizza.  Chegamos, assim, à primeira aula de 1956:
– Vamos ver até onde vocês ainda se lembram do que aprenderam no ano que passou.
O Mestre encheu o quadro com uma anedota que devíamos verter para o Latim.  Era complicado o trabalho?  Mas o quebra-cabeça me atraía.  Escrevi o latinório requerido, examinei os quorum e os quibus, e fui o primeiro a terminar o exercício.  No dia seguinte, além do único 10 da classe, comoveu-me a rasgada louvação de Zé Rolim.  Eu acertara o pé, embora não tomasse tento para manter-me à frente de condiscípulos com os quais, por muitos títulos e justas razões, eu não teria cabeça para porfiar.
Guardei por anos, entre os meus papéis, com veneração bem-querente, a Caderneta-símbolo do José Rolim Rodrigues professor.  Combinando-a com o efeito “osmótico” da surra de gramática latina, referida, tenho proclamado, sin perder la ternura jamás, que uma e outra foram causa e condição do meu amor pelos clássicos, e esse amor, alicerce e argamassa de minha constituição espiritual, é o sinal mais evidente do parentesco entre o menino matuto de Cajazeiras e o Padre salesiano de quem ele assistiu a primeira missa no Oratório do Padre Manuel.

 

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